Amigos do Fingidor

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Aniversário de Manaus


Pedro Lucas Lindoso
    
O saudoso Senador Jeferson Peres escreveu o clássico Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. Editado pela Valer e creio com edições esgotadas.
Evocar significa trazer à lembrança, à imaginação. Evoca-se o passado ou até espíritos! Já avocar é chamar a si, atribuir-se. Nossa língua e suas armadilhas.
Ninguém soube usá-la tão bem quanto Manuel Bandeira em suas belas poesias. Daí, inspirado em seu poema “Evocação do Recife”, fiz a paráfrase “Evocação de Manaus”, que ora se republica em homenagem ao aniversário de nossa cidade sorriso.


EVOCAÇÃO DE MANAUS
Pedro Lucas Lindoso

Manaus
Não a Hong Kong amazônica
Não a Paris dos Trópicos dos exportadores da hévea brasileira
Não a Manaus dos aproveitadores
Nem mesmo a Manaus que aprendi a amar depois
– Manaus das indignações libertárias
Mas a Manaus sem história nem literatura
Manaus sem mais nada
Manaus da minha infância
A Rua Henrique Martins onde eu brincava de manja
e partia as vidraças da casa de dona Iaiá
Seu Pio era muito velho e usava roupas antigas
sempre de linho branco
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Boca de Forno!
Forno!

A distância, as vozes macias das meninas politonavam:
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão

(Dessas quedas muitas
teriam caído no esquecimento...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em loja de turco!
Outra contrariava: Casa de família!
Seu Pio achava sempre que era loja do centro
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua Recife...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua Paraíba
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua Municipal
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era a Rua 13 de maio
...onde se ia ao cinema ver filme proibido
Rio Negro
– Rio Negro
Lá longe o bairro do Japiim
Banheiros de palafitas
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! O Rio Negro alagando as ruas do centro
E nos beiradões dos igarapés e igapós
os caboclos destemidos em canoas altaneiras

Novenas
Boi-bumbá
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Rio Negro
– Rio Negro
Rua 13 de Maio onde todas as tardes passava a tacacazeira
Com cuias, tucupi para tacacá
E o vendedor de cascalho
O de sorvetes
que se chamava picolé e não era industrializado
Me lembro de todos os pregões:
Tambaqui, pirarucu, sardinha e pacu
Dez ovos por um cruzeiro
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pela internet nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do caboclo amazonense
Ao passo que os intelectuais
O que fazem
É macaquear
A sintaxe dos brasileiros do sudeste
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam.
Manaus.
Rua Recife...
A casa de minha avó...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Manaus...
Minha avó morta
Manaus morta, Manaus boa, Manaus amazônida
como a casa de minha avó.