Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 2/4


Tenório Telles

Platão – crítica e imitação

A crítica nasceu com a Filosofia. Uma das primeiras reflexões sobre a poesia e a função do poeta na sociedade foi empreendida por Platão na sua obra mais expressiva, A República, escrita no século IV a.C. O julgamento do filósofo foi desfavorável aos artífices da palavra: considerados como meros “imitadores de imagens da virtude e também de tudo o mais sobre o que versam seus poemas e que não atingem a verdade” (PLATÃO, 2014, p. 389).
O foco da apreciação de Platão foi o autor da Odisseia que, sendo um imitador “por meio de palavras e frases” seria incapaz de colaborar para educar os homens e, assim, torná-los melhores. Outro pecado a justificar seu ponto de vista sobre a poesia, expressa na figura de Homero, deve-se ao fato de despertar, nos interlocutores dos textos poéticos, emoções capazes de ofuscar-lhes a razão:
Do mesmo modo, diremos que o poeta imitador cria uma constituição má dentro da alma de cada um, porque favorece o que ela tem de irracional e não discerne nem o maior nem o menor, mas ora julga grandes, ora pequenas as mesmas coisas, criando imagens vazias, mantendo-se, porém, bem afastado da verdade (PLATÃO, 2014, p. 396).

A severidade de Platão, motivada pela sua perspectiva utilitária da arte, resultou num posicionamento radical em relação ao poeta: o qual não deveria ser acolhido na cidade que imaginava (“governada por boas leis”), “pois ele desperta e nutre essa parte da alma e, tornando-a forte, destrói a razão” (PLATÃO, 2014, p. 396). Evidentemente, os critérios suscitados pelo autor de A República não eram estéticos, mas de caráter moral e político.
Essas primeiras reflexões já trazem os fundamentos que embasarão os debates sobre a natureza da arte, o sentido da criação – compreendendo o criador e a obra – e o seu papel social. E perpassando esses elementos, os critérios de julgamento e recepção dos objetos artísticos.

Arte e labor criativo

O texto em epígrafe, do poeta e crítico T. S. Eliot, retoma o discurso sobre o processo artístico em outros termos: entende a arte em seu sentido histórico e como labor criativo, que demanda dedicação e trabalho para ser apreendido. Isso significa que o artista é um sujeito que se constrói pelo esforço individual e como parte de uma tradição. Conhecê-la e apropriar-se de seu vasto repertório técnico e estético é imprescindível no processo criador e na renovação das expressões artísticas. Eliot (1989, p. 39) considerava que
nenhum poeta, nenhum artista tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si...

A perspectiva de Eliot sobre a cultura é diacrônica – em que passado e presente se imbricam como num jogo de espelhos em que um se reflete no outro, engendrando, assim, as possibilidades do futuro. Funde-se no outro, gerando um calidoscópio de formas e cores difusas, ambíguas e inapreensíveis – metáfora viva da arte. Esse ponto de vista do autor de A terra desolada faz parte de sua visão do fenômeno histórico e do fundamento estético que enforma sua produção poética (uma vez que a entendia como “princípio de estética”). A leitura da primeira parte do poema Quatro quartetos, intitulada “Burnt Norton”, é evocativa desse olhar sobre o tempo – compreendido como grandes fluxos superpostos que se autodeterminam:
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpetua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
(ELIOT, 1981, p. 199)

A cultura, a arte e a história constituem uma “totalidade” em movimento, em continuidade permanente – em que os fluxos temporais se imbricam, se amalgamam e fluem, assumindo formas e sentidos novos. Essa relação com a tradição, portanto com o passado, tensionada com o presente, desperta no escritor a consciência de que não é um astro desgarrado e nem é uma subjetividade fechada em si mesma, mas compreende-se situado na constelação dos criadores e “ferrageiro” do verbo: assim, situa-se, “para contraste e comparação, entre os mortos” (ELIOT, 1989, p. 39). O novo se funda sobre os alicerces do ontem – em que o hoje logo será ultrapassado pelo devir da grande máquina do mundo que torna tudo inapreensível e crepuscular.
Essa consciência não é um atributo imperativo apenas para o poeta, mas para todos os que se dedicam à palavra – seja o crítico, o professor, o autor: todos são chamados a refletir sobre as implicações estéticas e históricas de seus ofícios – sobretudo a “responsabilidade” como criadores e formadores, pois é inegável, sem descurar o aspecto estético, o caráter pedagógico das artes. O interesse pelo objeto artístico, como experiência de fruição da beleza, decorre da necessidade e do prazer experimentado pelos homens. Para Aristóteles (2011, p. 42), “A razão disto é também que aprender não sé só agradável para os filósofos, mas é-o igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala”.
O crítico, em particular, para levar a termo seu ofício, não pode prescindir do histórico, compreendido como o espaço das vivências, do aprendizado e repositório dos avanços técnicos, estéticos e dos conhecimentos. Inquisidor de seu tempo, portanto um contemporâneo, o crítico estende suas pontes entre as margens do grande oceanotempo da cultura, propiciando, como destaca Agamben (2002, p. 71): “um encontro entre os tempos e as gerações”.
A atividade crítica pressupõe uma atitude profissional e uma formação adequada para o seu exercício. Em se tratando de crítica literária, exige-se, como nos lembra Leyla Perrone-Moisés (2016, p. 68), “bagagem cultural e argumentos, e estes necessitam de um mínimo de fundamentação teórica, que só se adquire na prática de muita leitura ‘de’ e ‘sobre’ literatura... (e) requer formação e profissionalismo”.
O pacto da criação literária se estabelece por meio da relação do escritor com o leitor. O ponto de convergência entre os dois é o objeto artístico. O crítico literário, com seu conhecimento da tradição e domínio dos critérios estéticos e de legitimação da obra criativa, pode ajudar de forma construtiva na aproximação dos leitores dos textos literários e, assim, contribuir com sua formação. Isso esclarece a afirmativa de Eliot quando ressalta que o conhecimento do antigo e do novo é uma consciência que se exige do crítico e, ao mesmo tempo, é uma grande responsabilidade.
Crítico dos mais qualificados, Umberto Eco (2016, p. 272) considera que na definição da obra de arte “os valores (o ‘antes’ que está na origem da obra e o ‘depois’ ao qual se dirige a obra) só se resolvem em estrutura”. Como um corpus tecido com palavras, ideias e imagens, o objeto artístico pode expressar princípios contrastantes com a opinião do crítico ou ser afirmativo de posicionamentos preconceituosos. Nesse aspecto, é imperativa a capacidade de julgar do analista, que deve agir com distanciamento, honestidade e instrumentalizado de critérios estéticos claros. Eco problematiza a possibilidade de discordância em relação aos valores que enformam uma obra de arte, podendo contestá-la e apontar-lhe as fraquezas. A validade do objeto analisado é outra possibilidade e, por isso, conclui que
A tarefa do crítico pode ser também e especialmente esta: um convite a escolher e a discernir. Cada um de nós, lendo uma obra literária, ainda que professe os critérios técnico-estruturais aqui expostos, deve e pode encontrar uma relação emocional e intelectual, descobrir uma visão de mundo e do homem. É justo que existam pessoas com a sensibilidade mais apurada que nos comuniquem as experiências de leitura para que possam se tornar nossas também (ECO, 2016, p. 272).