Tenório
Telles
Resumo
Este
artigo se estrutura como uma reflexão sobre a crítica e a criação literária,
considerando a palavra como fundamento do labor criativo e instrumento do
escritor no seu processo de concepção e representação do mundo. Busca-se na
tradição, no sentido atribuído a ela por T. S. Eliot, a compreensão para o
trabalho do crítico – sua responsabilidade e atributos teóricos como condição
para o exercício da compreensão e julgamento do texto literário. Como uma
interlocução reflexiva, referencia-se no diálogo com estudiosos e poetas que
refletem sobre a experiência criadora e sua escritura.
A
tradição implica um significado muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e
se alguém a deseja, deve conquistá-la através de grande esforço. Ela envolve,
em primeiro lugar, o sentido histórico... (e) implica a percepção, não apenas
da caducidade do passado, mas de sua presença.
T. S. Eliot
Introdução
O poeta João Cabral de
Melo Neto (2010, p. 335), no poema “O ferrageiro de Carmona”, discute o
processo criativo e, ao mesmo tempo, expressa seu ponto de vista sobre seu
labor poético. A partir da arte do “ferrageiro”, o autor pernambucano
problematiza duas concepções sobre a arte de criar ou malhar o ferro. O texto
se constrói como um diálogo entre o eu lírico e o ferreiro de Carmona, que
informava de um balcão seu conhecimento sobre a técnica de dar forma a um
artefato metálico:
Aquilo?
É de ferro fundido,
foi
a fôrma que fez, não a mão.
(...)
Conhece
a Giralda, em Sevilha?
De
certo subiu lá em cima.
Reparou
nas flores de ferro
dos
quatro jarros das esquinas?
Pois
aquilo é ferro forjado.
Flores
criadas numa outra língua.
Apresentadas as duas abordagens sobre o
fazer artístico, desdobram-se as explicações sobre o fundamento, o significado
e a perspectiva do artista em relação à sua criação. O ferrageiro esclarece que
“o ferro fundido é sem luta / é só derramá-lo na fôrma”. Em contraposição,
afirma sua predileção pelo “ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro /
então, corpo a corpo com ele, / domo-o, dobro-o, até onde quero”.
Subjaz no poema a tradicional discussão
sobre a mímesis. As duas proposições
remetem ao debate entre Platão e Aristóteles sobre a relação entre as ideias e
os objetos criados. Se, para Platão, os objetos são mera imitação de formas
supraterrenas, para Aristóteles, o ato criativo e a própria imitação são
atributos humanos, associados à habilidade e ao domínio da técnica que enseja o
labor artístico, como ressalta na Poética:
Estando,
pois, de acordo com a nossa natureza a imitação, a harmonia e o ritmo (é
evidente que os metros são partes dos ritmos), desde tempos remotos, aqueles
que tinham já propensão para estas coisas, desenvolvendo pouco a pouco essa
aptidão, criaram a poesia a partir de improvisos (ARISTÓTELES, 2011, P. 43).
O poema de João Cabral
depreende as duas perspectivas: a platônica, expressa na ação do ferreiro que
trabalha com o “ferro fundido”, vazado na “fôrma”, em que “as flores” são
“moldadas pelas das campinas”, que, segundo Platão, já seriam uma imitação de
formas transcendentes. A concepção aristotélica vincula-se à técnica do “ferro
forjado”, que pressupõe, além do domínio da arte, a destreza do ferrageiro: “Só
trabalho em ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro”. O criador impõe
à sua criação as marcas de sua subjetividade, compreensão e método laborativo.
As proposições de Platão
e Aristóteles são incontornáveis nos estudos sobre o fenômeno criativo, os
fundamentos da arte e sobre a interpretação dos objetos artísticos. Suas
reflexões plasmam o pensamento dos variados críticos e, ao mesmo tempo, são afirmadoras
da força e importância da tradição, entendida simbolicamente como monumento
vivo e em contínuo processo de imbricação com o novo e atualização, como sublinha
T. S. Eliot (1989, p. 39, grifo do autor):
Os
monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica
pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem
existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista
após a introdução da novidade, a totalidade
da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e
desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo
são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo. Quem quer que
haja aceito essa ideia de ordem... não julgará absurdo que o passado deva ser
modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado.
A construção deste estudo
referencia-se nessas balizas teóricas que fundaram a compreensão do processo
criativo e a consolidação do pensamento crítico sobre o texto literário e sua
escritura, entendidas como parte de uma tradição que se reatualiza permanentemente:
Esse
sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do
atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso
que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente
consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade (ELIOT,
1989, p. 39).
Originalmente,
publicado na revista Kalíope. Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. ISSN
1808-6977, v. 12 n. 24 – 2017.
Aqui,
será publicado, sempre às segundas-feiras, em quatro partes.