Amigos do Fingidor

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Cultura, tradição e escritura 1/4


Tenório Telles


Resumo
Este artigo se estrutura como uma reflexão sobre a crítica e a criação literária, considerando a palavra como fundamento do labor criativo e instrumento do escritor no seu processo de concepção e representação do mundo. Busca-se na tradição, no sentido atribuído a ela por T. S. Eliot, a compreensão para o trabalho do crítico – sua responsabilidade e atributos teóricos como condição para o exercício da compreensão e julgamento do texto literário. Como uma interlocução reflexiva, referencia-se no diálogo com estudiosos e poetas que refletem sobre a experiência criadora e sua escritura.

A tradição implica um significado muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico... (e) implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença.
T. S. Eliot

Introdução
O poeta João Cabral de Melo Neto (2010, p. 335), no poema “O ferrageiro de Carmona”, discute o processo criativo e, ao mesmo tempo, expressa seu ponto de vista sobre seu labor poético. A partir da arte do “ferrageiro”, o autor pernambucano problematiza duas concepções sobre a arte de criar ou malhar o ferro. O texto se constrói como um diálogo entre o eu lírico e o ferreiro de Carmona, que informava de um balcão seu conhecimento sobre a técnica de dar forma a um artefato metálico:

Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.
(...)
Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.

Apresentadas as duas abordagens sobre o fazer artístico, desdobram-se as explicações sobre o fundamento, o significado e a perspectiva do artista em relação à sua criação. O ferrageiro esclarece que “o ferro fundido é sem luta / é só derramá-lo na fôrma”. Em contraposição, afirma sua predileção pelo “ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro / então, corpo a corpo com ele, / domo-o, dobro-o, até onde quero”.
Subjaz no poema a tradicional discussão sobre a mímesis. As duas proposições remetem ao debate entre Platão e Aristóteles sobre a relação entre as ideias e os objetos criados. Se, para Platão, os objetos são mera imitação de formas supraterrenas, para Aristóteles, o ato criativo e a própria imitação são atributos humanos, associados à habilidade e ao domínio da técnica que enseja o labor artístico, como ressalta na Poética:

Estando, pois, de acordo com a nossa natureza a imitação, a harmonia e o ritmo (é evidente que os metros são partes dos ritmos), desde tempos remotos, aqueles que tinham já propensão para estas coisas, desenvolvendo pouco a pouco essa aptidão, criaram a poesia a partir de improvisos (ARISTÓTELES, 2011, P. 43).

O poema de João Cabral depreende as duas perspectivas: a platônica, expressa na ação do ferreiro que trabalha com o “ferro fundido”, vazado na “fôrma”, em que “as flores” são “moldadas pelas das campinas”, que, segundo Platão, já seriam uma imitação de formas transcendentes. A concepção aristotélica vincula-se à técnica do “ferro forjado”, que pressupõe, além do domínio da arte, a destreza do ferrageiro: “Só trabalho em ferro forjado / que é quando se trabalha o ferro”. O criador impõe à sua criação as marcas de sua subjetividade, compreensão e método laborativo.
As proposições de Platão e Aristóteles são incontornáveis nos estudos sobre o fenômeno criativo, os fundamentos da arte e sobre a interpretação dos objetos artísticos. Suas reflexões plasmam o pensamento dos variados críticos e, ao mesmo tempo, são afirmadoras da força e importância da tradição, entendida simbolicamente como monumento vivo e em contínuo processo de imbricação com o novo e atualização, como sublinha T. S. Eliot (1989, p. 39, grifo do autor):

Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo. Quem quer que haja aceito essa ideia de ordem... não julgará absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado.

A construção deste estudo referencia-se nessas balizas teóricas que fundaram a compreensão do processo criativo e a consolidação do pensamento crítico sobre o texto literário e sua escritura, entendidas como parte de uma tradição que se reatualiza permanentemente:

Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade (ELIOT, 1989, p. 39).

Originalmente, publicado na revista Kalíope. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. ISSN 1808-6977, v. 12 n. 24 – 2017.
Aqui, será publicado, sempre às segundas-feiras, em quatro partes.