Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de março de 2018

A trágica compreensão colonial do pajé



João Bosco Botelho


Desde os primeiros tempos do processo colonial, o pajé despertou especial vigilância do colonizador, sempre inserida numa trágica e deliberada compreensão.
Existem várias palavras que estruturam significados semelhantes desse personagem especial: pagi, pay, payni, paié, paé, piaecé, piaché, pantché podem ser entendidas messe contexto complexo. Parecem estar etimologicamente atadas à expressão pa-yé, aquele que diz o fim ou profeta. Stradelli reconheceu o pajé como sinônimo de paié: “É o médico, o conselheiro da tribo, o padre, o feiticeiro, o depositário autorizado da ciência tradicional. Pajé não é um qualquer. Só os fortes do coração, os que sabem superar as provas de iniciação, que têm o fôlego necessário para ser pajé”.
A trágica e agressiva compreensão social do pajé pode ser compreendida a partir da descrição feita por Gabriel Soares de Souza, que esteve no Brasi no final do século 16: “Entre esse gentil tupinambá, há grandes feiticeiros, que têm este nome entre eles, por lhe meterem em cabeça mil mentiras... A estes feiticeiros chamam os tupinambás pajés”.
Não existem registros precisos, nas fontes primárias do século 16, de como os pajés eram formados. É possível que a ascensão do iniciante se desse de vários modos. Entretanto, pelos relatos dos cronistas, os pajés precisavam mostrar competência no desempenho das múltiplas funções: êxito no tratamento das doenças, previsões do tempo e das colheitas, antever acontecimentos importantes relacionados com as guerras.
O pajé começava a acumular respeito no seio da comunidade a partir do momento em que se concretizava uma previsão esperada, como revelou Yvez d’Evreux: “A revelação do feiticeiro dependia de algum acidente ou caso fortuito: como, por exemplo, se anunciando as chuvas, estas caiam imediatamente depois. Se, ainda, tendo soprado algum doente, por ventura, recuperava a saúde, isto constituía um meio de ser logo respeitado e tido como feiticeiro de muita experiência”.
Algumas vezes a iniciação se efetivava através de ritual específico, como no presenciado por Hans Staden, durante o qual os tupinambás elevavam algumas mulheres na dignidade dos pajés: “Primeiramente, vão os selvagens a uma choça, tomam uma após outra todas as mulheres da habitação e incensam-nas. Depois deve cada uma gritar, saltar e correr em roda até ficar tão exausta que cai ao solo como morta. Então diz o feiticeiro: Vede. Agora está morta. Logo a porei viva de novo. Quando voltar a si está apta a predizer coisas futuras...”
O colonizador percebeu precocemente a relevância do pajé nas sociedades e estruturou rapidamente a certeza da absoluta necessidade de destruí-lo. Este fato é da maior relevância porque amparou parte importante do processo de substituição dos valores socioculturais dos índios pelos do colonizador.
Existem registros relevantes demostrando ações coordenadas atuando para enfraquecer o pajé. Um dos mais significativos é do capuchinho Claude d’Abbeville, no livro “História dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas”, publicado em Paris, em 1914: “Perdeu muita importância o ofício do pajé depois que chegamos ao país, tanto mais quanto em nossa companhia havia um jovem que sabia fazer peloticas com as mãos e muitas prestidigitações... Logo que os maranhenses viram as peloticas daquele rapaz, puseram-se a admirá-lo e chamá-lo de pajé-açu. Mostrou-lhes então o senhor de Rasilly que tudo se devia a certa habilidade, comparando-o com os pajés, demonstrou que estes não passaram de pelotiqueiros e embusteiros. Resultou disso muitos abandonarem as suas crenças e finalmente até crianças zombavam dos pajés”.
Outro comentário de grande importância é do jesuíta José de Anchieta, ainda mais agressivo: “Já não ousas agora servir de teus artifícios, perversos feiticeiros, entre povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nem, com lábios imundos, chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelam, nem as vísceras que ardem de febre, nem as lentas podagras, nem os braços inchados... Se te prender algum dia a mão dos guardas, gemerás em vingadora fogueira ou pagará em sujo cárcere o merecido castigo”.
Parece claro que na comunicação cristã empregada na conquista e ocupação dos novos territórios, a substituição do poder do pajé estava na primeira linha do ataque.
Este fato, por si só, é suficiente para comprovar a importância social do pajé nas sociedades indígenas, motivando o conquistador para destruí-lo, como essencial para assentar a nova ordem cristã.