João Bosco Botelho
A elaboração do universo religioso do curador primordial foi
processada no âmago do conhecimento empírico da natureza circundante, e pela
transformação imposta a ela pelo homem, para obter o alimento e o abrigo.
A primitiva relação com outros animais, que gerou a figura
mítica do “senhor do animal”, foi sincretizada com outros símbolos, nascidos
pela posse da terra cultivada, dando como fruto o mito da “mãe terra”. A
utilização empírica do vegetal, indispensável para a sobrevivência, se processou
em complexa compreensão mítica da realidade, marcada pelas explicações para dar
sentido à vida, onde a busca da saúde e do conforto são fundamentais.
Ao sentir a pequenez frente à impossibilidade de vencer o
destino mortal, o homem estabeleceu alianças com as divindades mais fortes,
como a cirurgia de fimose feita pelos judeus no sétimo dia após o nascimento,
marcando na própria carne a prova da obediência (Ge 17, 9 14).
É possível situar a elaboração dos mitos cosmogônicos na
organização do pensamento do tipo tese-antítese-síntese, onde a vida representa
o ser em oposição à morte, onde o animal e o vegetal tornados sagrados passaram
a ter os papeis principais.
Nas sociedades antigas que se desenvolveram e prosperaram há
4.000 anos, ao longo dos vales dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Ganges, o
sincretismo entre o “senhor do animal” e a “mãe terra” estava claramente
presente no cotidiano do curador.
Foi da Grécia, há 2.500 anos, que chegou material
historiográfico suficiente para traçar, com alguma segurança, um perfil da
medicina ligada aos mitos cosmogônicos, onde o sagrado e o profano estão unidos
num só corpo, em permanente luta pelo predomínio.
A passagem da oralidade à escrita não se fez sem resistência.
Platão (Fedro, 274) resgatou a lenda do deus egípcio Thot, protetor dos
escribas, inventor dos números e dos cálculos para criticar a substituição da
lembrança oral, já em curso, naquele tempo na Grécia.