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quinta-feira, 3 de maio de 2018

Distanciamento da ética médica grega no medievo europeu



João Bosco Botelho



O processo da cristianização de Roma durante o reinado de Constantino e após, fruto do enfraquecimento das fronteiras romanas pelas invasões dos godos e visigodos, introduziu mudanças no sistema mercantil escravista para o feudal e alcançou a ética da Medicina.
Nesse processo complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da físis e se aproximou da doença como mal gerando o castigo divino, como nas culturas da Mesopotâmia, Egito, Índia e Grécia homérica, entre os séculos 7 e 5 a.C. Sem pretender simplificar muito, o tratamento mais importante para a doença como mal seria a força divina intervindo para promover a cura por meio do milagre.
É possível compreender essa abordagem, que motivou outros conceitos teóricos à ética, alcançando também as práticas médicas, como regressão às conquistas greco-romanas. Essas mudanças também provocariam desconstrução urbana, no medievo cristão europeu, com as administrações das cidades se descuidando da higiene pessoal, ruas estreitas, casas abafadas e sem exposição solar, pouca água potável, retorno do enterramento dos corpos nos limites urbanos e ausência de esgoto sanitário.
Os banhos públicos, usados simultaneamente por homens, mulheres e crianças, entendidos como local de excessiva exposição dos corpos, propiciando maior exacerbação da sexualidade, foram precocemente combatidos pela nova ordem cristã que se empenhou em fechá-los.
Esse fato, associado a outras importantes mudanças no urbanismo das cidades, alcançou o novo mundo cristão em ascensão, inclusive e especialmente a prática médica, fechando as escolas de Medicina e interditando o manuseio do corpo morto para o estudo da anatomia. Esse conjunto fulminou as práticas médicas greco-romanas, sob a égide da ética hipocrática, e introduziu outro processo monolítico ideológico, sob forte fiscalização eclesiástica, reconstruindo outra ética na Medicina, que se estenderia até a baixa Idade Média.
Os serviços profissionais dos médicos, até então entendidas como trabalho profissional remunerado, passam para a categoria dos trabalhos que deveriam seguir o exemplo da evangelização de Jesus Cristo e dos apóstolos, cujos sacerdócios incluíram muitas curas milagrosas. O milagre cristão passou a ser a principal motivação da cura das doenças.
A ética da Medicina absorveu, na Roma cristianizada, o entendimento da doença como consequência da desobediência a Deus, a Jesus Cristo e aos santos, tornando-se sinônimo de castigo. Com as escolas de Medicina fechadas e consequentemente o ciclo da formação de médicos interrompido, o povo sem opções, se intensificaram as peregrinações aos santuários católicos, especialmente, Jerusalém e Santiago de Compostela, na Espanha.
Com o fechamento das escolas de Medicina, a partir do final do século 6, as práticas médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram assistência aos doentes sob a égide da ética, moral e caridade cristã.
A partir do século 10, existem muitas referências sobre um personagem estranho e temido, que preencheu os espaços vazios deixados pela proibição eclesiástica da prática cirúrgica: o cirurgião-barbeiro. Sem formação médica, vínculo institucional ou obrigação ética, esses homens andarilhos percorriam os caminhos entre as cidades medievais, cortando cabelos, barbas e unhas, sem qualquer obrigação ética, amputavam membros gangrenados, lancetavam abscessos, quase sempre seguidos de morte dos doentes. Em determinas situações, essas mortes causadas pela prática dos cirurgiões-barbeiros, causavam intensos conflitos com a família dos mortos pela má prática ou com a administração dos burgos. Em certas cidades, quando os cirurgiões-barbeiros provocavam a morte de alguém com importância social, para evitar o linchamento, eram obrigados a fugir rapidamente.
O conjunto da Medicina, atada aos dogmas cristãos, acabaram no interior ou nas proximidades das abadias e conventos, distante das recomendações hipocráticas. Semelhante aos cirurgiões barbeiros, os padres despreparados provocaram tantos conflitos pela má prática, causando sequelas e mortes, gerando revoltas populares com destruição de igrejas e monastérios, que motivaram as autoridades cristãs, nos Concílios de Rems (1131) e de Roma (1139), a proibir que os religiosos exercessem a Medicina fora dos muros de suas instituições.