Amigos do Fingidor

domingo, 17 de abril de 2011

A arte emblemática de HR Giger 1/2

Jorge Bandeira

(Dedicado ao Mário Orestes)

Birth Machine Baby.
HR Giger, artista suíço que transita por várias artes com desenvoltura impressionante, é daqueles artistas que, pelo conjunto de sua obra, pode ser considerado um enigma de classificação: qual o seu gênero? Em que se enquadra o artista? Com certeza, o ecletismo é uma de suas características, onde o lúgubre e o gótico moderno, permeado por imagens misturadas de corpos e máquinas futuristas, são uma das tônicas mais presentes. A vertente na qual iremos nos deter por ora neste artigo é a do erotismo na arte de HR Giger e sua inegável contribuição para a arte moderna.

Giger, sem dúvida, capturou a essência da alma da modernidade, suas contradições e as mais profundas manifestações desta verdade “escondida” do ser humano. Arte e tentação. Giger forjou um neologismo para essas manifestações dentro de sua obra pictórica e escultural, representando os vários distúrbios da civilização industrial no Ocidente, a que ele chama de “Biomecanoide”, caracterizado pelo inevitável progresso tecnológico que escraviza a humanidade, e seus hibridismos e simbioses com o mundo das máquinas. Ao longo do século XX, e se consolidando plenamente nesta primeira década do século XXI, a tecnologia moderna, especialmente nas áreas da medicina, da informática e da robótica, engendrou inventos que servem como extensões dos músculos humanos, de seu sistema nervoso, de olhos e ouvidos, de reprodução de seus diversos órgãos, numa junção entre a ciência da Biologia e elementos da Mecânica, onde a nanotecnologia também tem um aspecto inovador.

Giger percebeu isso ainda no final dos anos de 1960, quando já trabalhava com o conceito de biomecanoide, que caracteriza toda a extensão de sua singular arte. Os chamados arquétipos dessa sua arte primordial podem ser encontrados nas narrativas fantásticas do Fausto, do Golem da tradição hebraica e na criatura criada pelo Dr. Frankenstein, histórias que se confundem com a realidade e que fazem parte do inconsciente coletivo. Podemos exemplificar com a criatura do Dr. Frankenstein, que já está no imaginário de todos, sua imagem é clássica e não se dilui em nossa mente, basta lembrar do nome Frankenstein (que é o nome de seu criador, a criatura não tem nome!) que imediatamente temos a elaboração mental do ser monstruoso. Giger, artista visionário e inovador, também conseguiu isso na contemporaneidade: todos lembram da terrível criatura do filme ALIENS, sua mais notória criação. Giger transportou para sua arte a violência e a destruição sem precedentes do século XX, de guerras televisionadas, revoluções sanguinárias, genocídio, brutalidade de agentes secretos do Estado, regimes totalitários, incluindo a nova versão do terrorismo na modernidade. A outra causa que Giger abraçou e verteu para sua produção artística foi a extraordinária mudança de mentalidade no tocante à sexualidade, mudança que revolveu muito do conservadorismo a partir de uma nova visualização da chamada liberdade sexual, onde a nova geração experimentou sem amarras ou sentimento de culpa o que antes era tido como promiscuidade, estando a liberação gay na linha de frente destas conquistas.

Landscape.
O lado sombrio da sexualidade já estava amalgamado com essa visão da cultura moderna: gravidez na adolescência, pornografia infantil e adulta, todas as formas bizarras de prostituição, sadomasoquismo coletivo, mercado de escravos e escravas sexuais etc. Nisso tudo, para jorrar ainda mais elementos sombrios, a rápida escalada mundial de propagação da AIDS, o que tornou inseparável a junção entre sexualidade e morte, Eros e Tânatos. Todos estes elementos estão presentes na arte biomecanoide de Giger. Seu estilo é inimitável. Como um grande mestre, ele mergulhou fundo em suas pesquisas e criações, projetando seus sonhos, numa concepção artística que alia a tecnologia mundial com as várias partes da anatomia humana. É extraordinário como Giger consegue misturar os aparatos sexuais com imagens de violência e com emblemas da morte. Esqueletos e ossos morfologicamente compostos, dentro de órgãos sexuais ou partes de máquinas futuristas, convivendo tranquilamente, resultando em imagens simbólicas da ruptura de um poder sexual, com violência, agonia e morte.

A agressão sexual é outra condicionante da obra de Giger, seus procedimentos estéticos com o erotismo, a “Gigerotic Art”. Giger pintou um mundo nebuloso, de um feio futuro, de um aterrorizante porvir, mundo destruído pelos excessos da tecnologia, uma tecnologia delirante de um inverno nuclear, um mundo contaminado pela alienação, sem homens ou animais, dominado por estranhas criaturas, um céu artificial, materiais plásticos e robóticos, aço e asfalto envelhecido. O gênio visionário de Giger chegou até as profundezas da psicologia humana. A morada dos pesadelos e da claustrofobia são o habitat da obra de Giger, e nisso presta reverência aos nomes de Goya, Bosch, Dalí e Ernst Fuchs. O fascínio provocado pelo estudo do inconsciente reflete-se na arte de Giger, e sua intuição e ousadia fazem com que o artista não seja reconhecido e aceito no circuito conservador da academia, uma oficialidade que para Giger não tem nenhuma importância.
Unknown Pleasures.

A arte de Giger também faz ecos estéticos e científicos com o Surrealismo e as teorias de Sigmundo Freud. O trabalho de Freud, a interpretação psicanalítica dos sonhos, causou um profundo efeito nas artes de modo geral. O conceito dos complexos, de Édipo, Electra, a fixação pela mãe, a castração do pai e a famosa vagina dentada, são concepções que adentraram no universo das artes do século XX, de forma irreversível. O simbolismo dos sonhos foi a chave para boa parte do movimento surrealista, em todas as suas variantes artísticas, da pintura ao cinema. Giger, porém, não se fez réfem de nenhuma corrente, criando um universo estético sem precedentes na arte moderna.