Amigos do Fingidor

domingo, 10 de abril de 2011

A vida em ficção

Jorge Tufic


Outras estórias de submundo, contos de Arthur Engrácio, Casa Editora Madrugada, 1988. Dividido em duas partes, este livro contém uma novela (“A toga manchada”) e dezesseis contos. Polariza em maturidade com “Áspero Chão de Santa Rita”, romance publicado em 1987, ambos a combinarem ciclos em duas fronteiras de temática e linguagem, sacadas em mundos e realidades diferentes: este, regionalista, enquanto seus trabalhos mais recentes ou mais esporádicos, estão na linha urbana, como o título acima. Uma tarefa realmente produtiva e proveitosa a deste escritor amazonense, que dispõe de jeito e suor a medir-se com os dois universos de sua vigília a serviço da literatura. Falamos daquele universo que aparentemente ficou no passado e deste outro, urbano e presente nos sonhos e pesadelos que se vão transferindo para o elenco da narrativa. Tanto num como noutro, entretanto, se agitam as formas viventes das necessidades em conflito. Predomina a luta entre o bem e o mal, sobrando uma grande vantagem de “santificação” para os que ficam abaixo do limiar do consumo e da cultura. Maniqueísmo? É a hipótese que se levanta. Tenha-se em vista, porém, que tudo, nestes pagos, orienta o indivíduo no sentido das oposições. E quanto ao pobre, ao injustiçado e humilde senhor das várzeas e dos estirões, ele conta, ao menos, com a proteção dos evangelhos da selva e de Cristo. Quantas parábolas, como a do camelo e da agulha, já não lhe conferem o nimbo da santidade? Sejam quais forem as interpretações desse contexto, a verdade é que Arthur Engrácio não pára de escrever. Sua base é a ficção. Seu objetivo é o social da vida amazônica. Esse objetivo é amplo e abrangente. Ele começa telúrico; vai, num crescendo, e degenera no urbano. A selva, como deve ser considerada em seu estado de natureza, transfere-se também para a roupagem das leis, dos costumes...e de suas transgressões rotineiras. O autor deste livro, ainda aferrado ao tradicional, continua adiando, por outro lado, o corpo a corpo da escritura-experiência, no sentido atual e corrente da técnica e da linguagem. Mas tem um jeito particular e saboroso de contar estórias, colocando sua obra de ficção numa espécie de ângulo aberto (e sempre favorável) a uma visão de conjunto. Assim, por exemplo, os causos e cenários descritos em suas páginas de fundo regional, são organicamente inseparáveis da terra e do homem amazônico. As de fundo psicológico e social, plasmam, da mesma forma, os dramas e episódios de várias fases de uma cidade que não pode ser outra, pelas suigeneridades que apresenta, senão a da Barra de São José do Rio Negro. Explicamos: suigeneridades porque todos os absurdos que não podem acontecer em outros lugares, acontecem na Barra. Alguns exemplos: aqui, restaurante fecha para o almoço; se faz lançamento de livro, sem livro; dá-se posse em cargo público, sem a respectiva nomeação do empossado; uma Assembléia de marajás julga atos de corrupção; “desmonta-se” o único Suplemento Literário do Estado, antes de ser montado ou implantado; etc. etc. E por que não pode existir ou ter existido, aqui também, uma toga manchada, tal como narra o autor em sua novela, que abre o volume?

Os agachados, novela em segunda edição de Antísthenes Pinto, ele também, como Arthur Engrácio, ficcionista dividido entre a várzea e a terra firme, entre a cidade e as terras-do-sem-fim, revela, com o máximo sucesso de estilo, tema e linguagem, aspectos dificilmente comportáveis da vida boêmia e dos bares de Manaus, aos quais eram levados e discutidos problemas de todos os matizes. Boêmio cultural, experiente, faro ambientado nos ácidos da estufa de Baco, o autor deste livro aproveita as excentricidades e engarrafa a medula filosófica de seus frequentadores. Nada escapa à lente gravadora do artista, capaz, como foi, de tecer um enredo central debaixo de numerosos outros projetos de romance, pondo em relevo as “correntes cruzadas” do modo singular de como uma sociedade banca e tolera os excessos da vida.

Há, neste livro de Antísthenes Pinto, o personagem central Rivaldo, que teve seu começo no Dr. Félix, um médico psiquiatra, portanto enclave na rotina classe média dos aperitivos. No entanto, todos os tipos do bar (ou dos bares), merecem aqui um retrato ou uma característica de corpo inteiro, caráter e vísceras expostas, no vômito e no verbo. O casamento das duas realidades – o surreal, entre o fato e a foto do cotidiano; e o real, entre a vida e a arte – também se entrelaçam com toda a violência, tensão e unidade. Desta maneira, raros serão os leitores de Os agachados – agachados, todos, sem exceção, diante do sistema econômico e político do País – que podem desconhecer a “matéria” quase impossível do bar e de seus viventes contumazes, sendo esta novela um documento sociológico e literário dos meios que, direta ou indiretamente, têm influído nos processos de transformação da nossa sociedade.