Amigos do Fingidor

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O que há num nome?

Pedro Lindoso*

 

“What's in a name? That which we call a rose by any other word would smell as sweet.”

“Que é que há num nome? O que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com outro nome.”

William Shakespeare, in Romeu e Julieta

Raimunda Silva nasceu em Parintins, terra dos bumbás Caprichoso, da cor azul, e Garantido, vermelho. Raimunda, ou Rai, como prefere ser chamada, desde sempre teve problemas com nomes. O seu próprio nome, como todo brasileiro sabe, rima com palavra africana que denomina uma parte do corpo humano a qual a natureza genética favoreceu a nossa heroína com especial fervor.

            Raimunda é filha de “Seu” Raiovaque e Dona Pro Rep. Sofre todos os  constrangimentos possíveis ao ter que explicar a origem dos nomes de seus amados genitores. Raiovaque foi batizado assim porque seu saudoso pai, avô de Raimunda, achava que as pilhas Ray o Vac eram as melhores do mundo. Ora, as pilhas da marca Ray o Vac fazem parte da história e da vida de muitos brasileiros, há décadas. As famosas amarelinhas. Mas dar nome a um filho de Raiovaque é fazer com que a criança tenha desvantagem na vida já na pia batismal. Sua mãe, Dona Pro Rep. nasceu no dia da Proclamação da República. Na folhinha do calendário estava abreviado Pro de proclamação e Rep. de república. Como o dia era feriado, provavelmente a santa seria de grande prestígio. Daí, batizaram a pequena parintinense de Pro Rep. Santa ignorância.

Dona Pro e seu Rayovaque  sempre foram pais dedicados, gente da melhor qualidade. Raiovaque e Dona Pro Rep logo cedo resolveram investir na educação da filha Raimunda, que de tanta chacota, com ajuda de amigos e professores, ficou definitivamente conhecida como Rai.

Rai, ainda garota, começou a estudar Inglês. A língua inglesa é de grande utilidade em Parintins, principalmente na época do festival folclórico. A cidade se enche de turistas do mundo todo. Rai ficou empolgadíssima com a oportunidade de aprender Inglês. Sempre se preocupou em estudar muito. Acreditava um dia alçar novos rumos, em direção a Manaus ou até mesmo o Rio de Janeiro e Miami.

 Os sonhos de menina, já bem escolarizada e ávida por livros, eram  incrementados pelas informações que não paravam de aportar a Parintins. Tudo por conta do boi bumbá. Navios e aviões vindos de todos os lugares do planeta, via Manaus, sempre traziam novidades, cultura e conhecimento.

No primeiro dia de aula de Inglês, o professor saudou a turma com um sonoro “hi”. Rai achava que era com ela e disse “presente professor”. Risada geral. Pensou em trocar o apelido para Raí. Lembrou-se do famoso jogador de futebol e desistiu. Os nomes pareciam entraves em sua vida. Mas a menina não desanimou. Estudou com afinco. Os americanos acham engraçado que a moça se chame Rai, que soa como “hi”, que, todos sabem, é “oi” em Inglês.

Atualmente, Rai fala Inglês razoavelmente bem, além de ser uma linda cunhã poranga, a moça bonita da tribo. Dizem ter sido sondada para se apresentar como cunhã poranga do boi ou rainha do folclore, itens apresentados pelas belas garotas de Parintins, durante o famoso festival.

Teria que ser do Caprichoso, é claro. Fervorosa brincante do boi Caprichoso, não usa absolutamente nada de vermelho, cor do Garantido. Tudo é azul. Só toma Coca-Cola porque em Parintins há dois  “outdoors” da Coca-Cola. Um em azul do lado do Caprichoso e outro  em vermelho do lado do Garantido.

 Raí formou-se em Letras no campus avançado da universidade federal, lá em Parintins mesmo. E tem “notebook”, doado por um gringo que quase a raptou, com juras de amor. Não fosse ela uma cabocla sabida, alfabetizada e muito consciente do que quer da vida.

Depois não gostou do nome do gringo. Chamava-se Raymond, apelidado de Ray. Era muita confusão. E ainda por cima, lembrava o constrangedor nome de seu querido pai, inspirado nas pilhas Ray o Vac. Ah! Os nomes. Sempre atormentando a vida da Rai.


Um dia, Rai apaixonou-se por um rapaz do boi Garantido. A rivalidade entre os bois de Parintins extrapola os dias de festa. O rapaz tinha sobrenome de família  fundadora do boi contrário ao seu. Enamorou-se de um brincante do boi inimigo. Com sobrenome de família de boi inimigo. Prenúncio de tragédia. Amor impossível. Por coincidência, à época, estudava Romeu e Julieta na faculdade. Memorizou com afinco a fala de Julieta, que aqui vamos transcrever, na tradução de Fernando Nuno, para a editora Objetiva:

“É só seu nome que é meu inimigo:
Mas você é você, não é Montéquio!
Que é Montéquio? Não é pé, nem mão,
Nem braço, nem feição, nem parte alguma
De homem algum. Oh, chame-se outra coisa!
Que é que há num nome? O que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com outro nome;
E assim Romeu, chamado de outra coisa,
Continuaria sempre a ser perfeito,
Com outro nome. Mude-o, Romeu,
E em troca dele, que não é você.
Fique comigo.” 

A frase “Que é que há num nome? O que chamamos rosa/Teria o mesmo cheiro com outro nome;” resumia a sua história, a sua vida. Mas Raimunda era muito prática. Não seria uma Julieta cabocla. Nem pensar. Melhor apaixonar-se por Shakespeare.

 Houve por bem esquecer seu Romeu caboclo. O rapaz só queria saber de dança do boi e nada de leitura. Hoje, sem dúvida, a culta parintinense é a pessoa que mais conhece literatura na cidade. É um fenômeno. Sem nunca ter saído de Parintins já leu Machado de Assis, Eça de Queiroz e avança especializando-se em literatura brasileira contemporânea. Tem preferência pelas escritoras Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles. Por último, encantou-se com os trabalhos de Nélida Piñon. Ocorre que ficara grávida do pretendente a pajé do Garantido. Aquele que só queria saber de ser dançarino de boi, e de boi inimigo. Resolveu assumir a gravidez ocultando-a do namorado, na solidão de moça moderna. Mesmo porque seria constrangedor que um filho de uma cunhã do Caprichoso, tivesse um pai pajé do Garantido. Melhor mesmo ficar como filho do boto, muito comum na região. Resolveu que seu filho se chamaria Daniel. Acabaria com as chacotas de nomes em sua família. Entretanto, nasceu uma linda menina. Pesquisando a vida de Nélida Piñon, soube que Nélida é anagrama de Daniel, avô da escritora. Por fim batizou a filha de Nélida Piñon da Silva, na certeza de que sua princesa não vai sofrer agruras com o nome escolhido. Será?