Pedro Lindoso*
“What's in a name? That which we call a rose by any other word would
smell as sweet.”
“Que é que há num nome? O
que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com
outro nome.”
William Shakespeare, in Romeu e Julieta
Raimunda Silva nasceu em
Parintins, terra dos bumbás Caprichoso, da cor azul, e Garantido, vermelho.
Raimunda, ou Rai, como prefere ser chamada, desde sempre teve problemas com
nomes. O seu próprio nome, como todo brasileiro sabe, rima com palavra africana
que denomina uma parte do corpo humano a qual a natureza genética favoreceu a
nossa heroína com especial fervor.
Raimunda
é filha de “Seu” Raiovaque e Dona Pro Rep. Sofre todos os constrangimentos possíveis ao ter que explicar
a origem dos nomes de seus amados genitores. Raiovaque foi batizado assim
porque seu saudoso pai, avô de Raimunda, achava que as pilhas Ray o Vac eram as
melhores do mundo. Ora, as pilhas da marca Ray o Vac fazem parte da história e
da vida de muitos brasileiros, há décadas. As famosas amarelinhas. Mas dar nome
a um filho de Raiovaque é fazer com que a criança tenha desvantagem na vida já
na pia batismal. Sua mãe, Dona Pro Rep. nasceu no dia da Proclamação da
República. Na folhinha do calendário estava abreviado Pro de proclamação e Rep.
de república. Como o dia era feriado, provavelmente a santa seria de grande prestígio.
Daí, batizaram a pequena parintinense de Pro Rep. Santa ignorância.
Dona Pro e seu Rayovaque sempre foram pais dedicados, gente da melhor
qualidade. Raiovaque e Dona Pro Rep logo cedo resolveram investir na educação
da filha Raimunda, que de tanta chacota, com ajuda de amigos e professores,
ficou definitivamente conhecida como Rai.
Rai, ainda garota, começou
a estudar Inglês. A língua inglesa é de grande utilidade em Parintins,
principalmente na época do festival folclórico. A cidade se enche de turistas
do mundo todo. Rai ficou empolgadíssima com a oportunidade de aprender Inglês.
Sempre se preocupou em estudar muito. Acreditava um dia alçar novos rumos, em
direção a Manaus ou até mesmo o Rio de Janeiro e Miami.
Os sonhos de menina, já bem escolarizada e
ávida por livros, eram incrementados
pelas informações que não paravam de aportar a Parintins. Tudo por conta do boi
bumbá. Navios e aviões vindos de todos os lugares do planeta, via Manaus,
sempre traziam novidades, cultura e conhecimento.
No primeiro dia de aula de
Inglês, o professor saudou a turma com um sonoro “hi”. Rai achava que era com
ela e disse “presente professor”. Risada geral. Pensou em trocar o apelido para
Raí. Lembrou-se do famoso jogador de futebol e desistiu. Os nomes pareciam
entraves em sua vida. Mas a menina não desanimou. Estudou com afinco. Os
americanos acham engraçado que a moça se chame Rai, que soa como “hi”, que, todos
sabem, é “oi” em Inglês.
Atualmente, Rai fala
Inglês razoavelmente bem, além de ser uma linda cunhã poranga, a moça bonita da
tribo. Dizem ter sido sondada para se apresentar como cunhã poranga do boi ou
rainha do folclore, itens apresentados pelas belas garotas de Parintins,
durante o famoso festival.
Teria que ser do
Caprichoso, é claro. Fervorosa brincante do boi Caprichoso, não usa
absolutamente nada de vermelho, cor do Garantido. Tudo é azul. Só toma
Coca-Cola porque em Parintins há dois “outdoors” da Coca-Cola. Um em azul do lado do
Caprichoso e outro em vermelho do lado
do Garantido.
Raí formou-se em Letras no campus avançado da
universidade federal, lá em Parintins mesmo. E tem “notebook”, doado por um
gringo que quase a raptou, com juras de amor. Não fosse ela uma cabocla sabida,
alfabetizada e muito consciente do que quer da vida.
Depois não gostou do nome
do gringo. Chamava-se Raymond, apelidado de Ray. Era muita confusão. E ainda
por cima, lembrava o constrangedor nome de seu querido pai, inspirado nas
pilhas Ray o Vac. Ah! Os nomes. Sempre atormentando a vida da Rai.
Um dia, Rai apaixonou-se
por um rapaz do boi Garantido. A rivalidade entre os bois de Parintins
extrapola os dias de festa. O rapaz tinha sobrenome de família fundadora do boi contrário ao seu. Enamorou-se
de um brincante do boi inimigo. Com sobrenome de família de boi inimigo. Prenúncio
de tragédia. Amor impossível. Por coincidência, à época, estudava Romeu e
Julieta na faculdade. Memorizou com afinco a fala de Julieta, que aqui vamos
transcrever, na tradução de Fernando Nuno, para a editora Objetiva:
“É só seu nome que é meu inimigo:
Mas você é você, não é Montéquio!
Que é Montéquio? Não é pé, nem mão,
Nem braço, nem feição, nem parte alguma
De homem algum. Oh, chame-se outra coisa!
Que é que há num nome? O que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com outro nome;
E assim Romeu, chamado de outra coisa,
Continuaria sempre a ser perfeito,
Com outro nome. Mude-o, Romeu,
E em troca dele, que não é você.
Fique comigo.”
A frase “Que é que há num nome? O que chamamos rosa/Teria
o mesmo cheiro com outro nome;” resumia a sua história, a sua vida. Mas
Raimunda era muito prática. Não seria uma Julieta cabocla. Nem pensar. Melhor
apaixonar-se por Shakespeare.
Houve por bem esquecer seu Romeu caboclo. O
rapaz só queria saber de dança do boi e nada de leitura. Hoje, sem dúvida, a
culta parintinense é a pessoa que mais conhece literatura na cidade. É um
fenômeno. Sem nunca ter saído de Parintins já leu Machado de Assis, Eça de
Queiroz e avança especializando-se em literatura brasileira contemporânea. Tem
preferência pelas escritoras Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Lígia
Fagundes Telles. Por último, encantou-se com os trabalhos de Nélida Piñon.
Ocorre que ficara grávida do pretendente a pajé do Garantido. Aquele que só
queria saber de ser dançarino de boi, e de boi inimigo. Resolveu assumir a
gravidez ocultando-a do namorado, na solidão de moça moderna. Mesmo porque
seria constrangedor que um filho de uma cunhã do Caprichoso, tivesse um pai
pajé do Garantido. Melhor mesmo ficar como filho do boto, muito comum na
região. Resolveu que seu filho se chamaria Daniel. Acabaria com as chacotas de
nomes em sua família. Entretanto, nasceu uma linda menina. Pesquisando a vida de
Nélida Piñon, soube que Nélida é anagrama de Daniel, avô da escritora. Por fim
batizou a filha de Nélida Piñon da Silva, na certeza de que sua princesa não
vai sofrer agruras com o nome escolhido. Será?