Zemaria Pinto
Somente a arte pode redimir a humanidade
No “Monólogo”, a Sombra arremata sua
fala, emitindo o conceito-chave da obra de Augusto dos Anjos. Ecoando
Schopenhauer – para quem a arte é um bálsamo para o sofrimento humano –, a
Sombra afirma que somente a arte pode redimir a humanidade. Somente a arte pode
libertar o homem da rede de misérias em que ele se envolveu, moral e
fisicamente. Mas poucos são os que têm o privilégio de percebê-lo. Poucos se
dão ao ofício ou à contemplação da arte. Desta forma, cabe ao artista
manifestar-se unicamente pela dor. A sua dor é a dor universal. Manifestando-a,
ele denuncia a corrupção a que está submetida a humanidade. Essa é a sua
alegria.
“Somente
a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda
as rochas rígidas, torna água
Todo
o fogo telúrico profundo
E
reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À
condição de uma planície alegre,
A
aspereza orográfica do mundo!
Provo
desta maneira ao mundo odiento
Pelas
grandes razões do sentimento,
Sem
os métodos da abstrusa ciência fria
E
os trovões gritadores da dialética,
Que
a mais alta expressão da dor estética
Consiste
essencialmente na alegria.”
(p. 199)
Em Os
doentes, a máscara lírica, vagando incerta, afirma buscar entender “o que
nem Spencer, nem Haeckel compreenderam” (p. 236), colocando em cheque o
conhecimento científico. A Sombra reitera sua confiança no sentimento, que não
se curva à ciência e nem se deixa seduzir pela dialética, para chegar a uma
conclusão, que é fruto de pura observação empírica. São princípios do budismo,
que é pautado por uma razão pragmática, contrária à racionalização e à indução.
A Sombra afirma que somente a “dor estética”, isto é, a dor forjada com arte, a
dor “fingida” (não necessariamente sentida), pode proporcionar alegria a quem
se entrega à contemplação artística. Este é um conceito novo: dor estética. E
este é o projeto de Augusto dos Anjos: mostrar-nos a degradação da humanidade de
maneira estética. Uma estética diferente, calcada no sofrimento humano.
Para a máscara lírica, que só se
manifesta nas três últimas estrofes do poema (o que lhe empresta
características de poema dramático), o que ela ouvira da Sombra – “A orquestra
arrepiadora do sarcasmo!” (p. 199) – era a manifestação da própria natureza
divinizada:
Era
a elégia panteísta do Universo,
Na
podridão do sangue humano imerso,
Prostituído,
talvez, em suas bases...
Era
a canção da Natureza exausta,
Chorando
e rindo na ironia infausta
Da
incoerência infernal daquelas frases.
(p. 200)
Durante muito tempo, a crítica mais
apressada acusou a “incoerência”, a “falta de nexo” da poesia de Augusto dos
Anjos. Fazendo as conexões devidas, percebemos que ele, antecipando-se, não só
tinha consciência disso, mas ainda ironiza o fato.
“Monólogo de uma sombra” engendra um postulado
ético, denunciando a degradação moral e física a que o homem está submetido; e
inventa um postulado estético, ao propor uma nova maneira de fazer poesia a
partir da “expressão da dor” calcada na realidade vivida, o que atropelava a
cristalina poesia parnasiana, bem como a hermética poesia simbolista. Estes
dois postulados estão presentes, quase sempre associados, na maioria dos poemas
do Eu, compondo o seu tema mais
abrangente: a degradação da humanidade vista pela estética da dor. Isso mostra o quanto o autor tinha
consciência do seu projeto de poesia.
Vários pontos de contato com a estética
expressionista são manifestados no “Monólogo de uma sombra”: a fragmentação do
eu e da realidade, a partir do discurso da Sombra; a simultaneidade da fala,
que leva a própria máscara lírica a citar a “incoerência infernal” daquelas
frases; o clima onírico, que perpassa todo o poema, numa dimensão que tangencia
o demoníaco; o grotesco que emana de cada estrofe, a manifestar o nojo à
natureza humana; a utopia de um mundo, guiado pelo não-racionalismo, para
preservar os valores mais puros do ser humano; o misticismo panteísta de um
Deus (“substância de todas as substâncias”) representado pela Natureza; a
crença de que o sentimento pode ser superior à ciência e à filosofia; a crença
na Arte como fator de transformação da Humanidade.
O “Monólogo de uma sombra” é um grito de
dor, mas é também um canto de esperança. Dor pela humanidade doente. Esperança
de que a poesia – ou melhor, a Arte – seja o lenitivo para essa dor.