Amigos do Fingidor

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos 7/12

Zemaria Pinto
Somente a arte pode redimir a humanidade



No “Monólogo”, a Sombra arremata sua fala, emitindo o conceito-chave da obra de Augusto dos Anjos. Ecoando Schopenhauer – para quem a arte é um bálsamo para o sofrimento humano –, a Sombra afirma que somente a arte pode redimir a humanidade. Somente a arte pode libertar o homem da rede de misérias em que ele se envolveu, moral e fisicamente. Mas poucos são os que têm o privilégio de percebê-lo. Poucos se dão ao ofício ou à contemplação da arte. Desta forma, cabe ao artista manifestar-se unicamente pela dor. A sua dor é a dor universal. Manifestando-a, ele denuncia a corrupção a que está submetida a humanidade. Essa é a sua alegria.


“Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,

Abranda as rochas rígidas, torna água

Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre,

À condição de uma planície alegre,

A aspereza orográfica do mundo!



Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressão da dor estética

Consiste essencialmente na alegria.”

(p. 199)



Em Os doentes, a máscara lírica, vagando incerta, afirma buscar entender “o que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam” (p. 236), colocando em cheque o conhecimento científico. A Sombra reitera sua confiança no sentimento, que não se curva à ciência e nem se deixa seduzir pela dialética, para chegar a uma conclusão, que é fruto de pura observação empírica. São princípios do budismo, que é pautado por uma razão pragmática, contrária à racionalização e à indução. A Sombra afirma que somente a “dor estética”, isto é, a dor forjada com arte, a dor “fingida” (não necessariamente sentida), pode proporcionar alegria a quem se entrega à contemplação artística. Este é um conceito novo: dor estética. E este é o projeto de Augusto dos Anjos: mostrar-nos a degradação da humanidade de maneira estética. Uma estética diferente, calcada no sofrimento humano.

Para a máscara lírica, que só se manifesta nas três últimas estrofes do poema (o que lhe empresta características de poema dramático), o que ela ouvira da Sombra – “A orquestra arrepiadora do sarcasmo!” (p. 199) – era a manifestação da própria natureza divinizada:



Era a elégia panteísta do Universo,

Na podridão do sangue humano imerso,

Prostituído, talvez, em suas bases...

Era a canção da Natureza exausta,

Chorando e rindo na ironia infausta

Da incoerência infernal daquelas frases.

(p. 200)

Durante muito tempo, a crítica mais apressada acusou a “incoerência”, a “falta de nexo” da poesia de Augusto dos Anjos. Fazendo as conexões devidas, percebemos que ele, antecipando-se, não só tinha consciência disso, mas ainda ironiza o fato.

 “Monólogo de uma sombra” engendra um postulado ético, denunciando a degradação moral e física a que o homem está submetido; e inventa um postulado estético, ao propor uma nova maneira de fazer poesia a partir da “expressão da dor” calcada na realidade vivida, o que atropelava a cristalina poesia parnasiana, bem como a hermética poesia simbolista. Estes dois postulados estão presentes, quase sempre associados, na maioria dos poemas do Eu, compondo o seu tema mais abrangente: a degradação da humanidade vista pela estética da dor. Isso mostra o quanto o autor tinha consciência do seu projeto de poesia.

Vários pontos de contato com a estética expressionista são manifestados no “Monólogo de uma sombra”: a fragmentação do eu e da realidade, a partir do discurso da Sombra; a simultaneidade da fala, que leva a própria máscara lírica a citar a “incoerência infernal” daquelas frases; o clima onírico, que perpassa todo o poema, numa dimensão que tangencia o demoníaco; o grotesco que emana de cada estrofe, a manifestar o nojo à natureza humana; a utopia de um mundo, guiado pelo não-racionalismo, para preservar os valores mais puros do ser humano; o misticismo panteísta de um Deus (“substância de todas as substâncias”) representado pela Natureza; a crença de que o sentimento pode ser superior à ciência e à filosofia; a crença na Arte como fator de transformação da Humanidade.

O “Monólogo de uma sombra” é um grito de dor, mas é também um canto de esperança. Dor pela humanidade doente. Esperança de que a poesia – ou melhor, a Arte – seja o lenitivo para essa dor.