Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Rei, a Adúltera, o Soldado e o Menino


Inácio Oliveira

I

            O rei estava olhando do terraço do palácio. Cansado estava da terrível rotina das guerras, do austero campo de batalha onde muitas vezes sujara suas mãos em tanto sangue. Esperava notícias de Rabá, onde neste instante seu exército, sob o comando de Joabe, enfrentava os amonitas.  Se Davi fechasse os olhos seria possível ver o horror no rosto de seus soldados e ouvir os seus gritos, o desespero de uma inútil guerra imperialista. Porém a aragem fria da tarde de Jerusalém contrastava com seus obscuros pensamentos. Ouvia-se o balido de uma ovelha ao longe, crianças brincavam com espadas feitas de madeira sob a sombra de algumas oliveiras, homens exaustos regressavam dos campos, pequenas estrelas se insinuavam no céu azul e límpido donde o crepúsculo despencava. Neste preciso instante quando o dia não é mais dia e a noite não é noite ainda Davi desviou seu olhar do horizonte e por um momento – que deve ter sido breve, mas que pareceu imenso – ele pôde contemplar a mulher que tomava banho junto ao jardim da sua casa. Davi pôde sentir a água morna que deslizava suavemente sobre o corpo moreno e queimado de sol da mulher, pôde ver a delicada espuma que se formava sobre o púbis, pôde ver os seios e a violácea auréola de seus mamilos, pôde sentir o cheiro de sândalo que se desprendia de seus longos cabelos. Imediatamente seus pensamentos bélicos se desvaneceram e seu espírito foi tomado de concupiscência.

            O rei retirou-se do terraço, mas a imagem da banhista ficou impregnada no seu pensamento de tal modo que nem suas seis mulheres, nem suas muitas concubinas o fizeram esquecer. Davi, homem experimentado nas artes do amor e da guerra, que já havia rejeitado Mical, a princesa, derrotado o temível Golias e enfrentado os valentes Filisteus sentia-se agora fraco e indefeso diante da visão de uma mulher. Visão diante da qual caem todos os homens, sejam eles servos, soldados, camponeses ou reis.

II

            – Seu nome é Betseba, senhor. Filha de Eliã. Neta de Aitofel, seu conselheiro. Mulher de Urias, o hitita, seu soldado.

            Davi sabia que com aquela mulher viria a desgraça sobre seu reino, mas ele era o rei, o inquestionável rei. Como se negar se o desejo era chaga ardente em seu corpo? Precipitado estava nas delícias do inverno aquele, cujo coração era segundo Deus. Quando Betseba atravessou os portões do palácio o suave roçar de suas pernas sob a fina veste de linho, seu corpo esguio e sua face hebreia tornavam-na um ser poderoso, mais poderoso que os exércitos de Judá e Israel juntos, um poder que só mesmo o tempo é capaz de usurpar.  Não foi preciso que se dissesse nenhuma palavra. Tudo estava dito no silêncio lascivo do rei, na submissão plebeia de Betseba e na cumplicidade leal do servo. Naquele momento foi como se o tempo parasse e o mundo regressasse às suas origens e aqueles dois ali, não mais o rei e a mulher do soldado, mas apenas um homem e uma mulher, inaugurassem o primeiro amor, uma coisa vital e sem precedentes.

            Um novo ser se engendrara naquele encontro. Esta criança espiará este pecado. Ele não saberá o que aconteceu. Não receberá título de príncipe, nem de bastardo. Seus pés não pisarão as estradas de terra que cortam Jerusalém. Não conhecerá os privilégios da corte, nem o horror das batalhas. Não saberá do vinho, nem da música. Não conhecerá o amor de uma mulher. Será irmão mais velho de um grande rei, mas o mundo não saberá o seu nome e ele jamais entenderá a razão do seu trágico destino prefixado.

            Ao saber que em seu ventre crescia o filho de um rei, Betseba por um momento desejou que Urias não voltasse da guerra. Avisou ao rei que aquele breve encontro não terminara ali ao cessar dos corpos e que se prolongava no seu em forma de um filho. O rei que já pressentia as consequências do seu ato não se perturbou. O seu plano era tão simples que não podia dar errado. Ordenou a Joabe que enviasse Urias de volta. Ao encontrá-lo, Davi perscrutou seu rosto fatigado da guerra e seu corpo dilacerado de soldado que resistia à fúria do inimigo. Ali estava um homem traído por ele e que por ele lutava, e em seu nome seria capaz de sacrificar a própria vida. O rei sentiu-se pequeno e torpe diante do soldado. Teve ímpetos de abraçá-lo e prostrar-se aos seus pés, mas um rei jamais faria tal coisa. Davi ordenou então que Urias retornasse a sua casa e descansasse ao lado da sua mulher. Assim estava tudo resolvido. Betseba conceberia um filho de sangue real que seria filho de um soldado.

            Urias, no entanto, obedecendo ao rígido código de conduta dos soldados não pôde retornar à sua casa para comer, beber e deitar-se com sua mulher enquanto os demais acampavam ao relento sob o sol e a chuva. Ficou nos portões do palácio junto aos guardas do rei. Permanecendo mais um dia na corte comeu e bebeu junto ao seu senhor, e mesmo embriagado não voltou para casa. Espera voltar para guerra e devia abster-se do sexo. Davi percebendo que seu plano se frustrara escreveu uma carta a Joabe:

Deixe Urias na linha de frente onde o combate estiver mais violento, para que seja ferido e morra.

            Com esta carta o rei enviou Urias de volta à guerra. O soldado não sabia que levava em suas mãos a própria morte.

            Quando Urias chegou à cidade o cerco estava formado, mas coube a ele o primeiro lugar na linha de frente, onde uma flecha amonita atravessaria seu peito – olharia para o céu a tempo de ver as primeiras estrelas, pensaria em Betseba, no filho que não fez e na descendência que não teria enquanto seria pisoteado pelos próprios companheiros. Arrepender-se-ia de não ter voltado para casa e feito amor uma última vez com sua mulher. – O silêncio do lugar prenunciava sangue e morte. Sedentos estavam os homens de violência. Abutres riscavam o céu e o turvo ocaso dava a impressão de um mundo medonho e abandonado. Um leve burburinho crescia de dentro das muralhas da cidade e flechas ardentes iluminavam o céu que escurecia.   

            Receoso estava o mensageiro que trazia notícias da guerra naquela manhã. A imperícia de Joabe trouxera a morte de muitos homens, inclusive de Urias, o hitita, um dos trintas melhores guerreiros. O que decerto desagradaria o rei, mas o rei foi complacente. – Não te preocupes com isso, pois a espada não escolhe a quem devorar. Reforcem o ataque à cidade até destruí-la. Diga a Joabe que minha força está com ele. Mais que o fim da guerra Davi esperava o fim do luto de Betseba. Em verdade duas guerras se travavam: uma entre seu exército e o exército amonita, outra, silenciosa no seu espírito e está seria longa, muito mais longa e destrutiva que todas as guerras.

            Passado o luto de Betseba Davi tornou-a sua sétima esposa. Ninguém estranhou, pois esta não era a primeira vez que Davi tomava uma viúva como esposa. Junto à Abigail, viúva de Napal juntava-se Betseba, viúva de Urias e todo o povo pôde perceber o quanto aquele rei era justo e misericordioso. O que o povo não percebeu era que de suas mãos escorria o sangue de um inocente.

                                                                      III

            – Permita-me lhe contar uma história. Disse o profeta ao rei. – Dois homens viviam numa cidade. Um era rico e o outro pobre. O rico possuía muitas ovelhas e bois, mas o pobre nada tinha, senão uma cordeirinha. Ele a criou e ela dormia em seus braços. Certo dia o rico recebeu a visita de um viajante e para preparar um banquete, em vez de pegar suas próprias ovelhas, o homem rico preparou a cordeirinha do homem pobre.

            – Juro pelo nome do Senhor que este homem merece a morte! Irou-se o rei. – Ele deverá pagar quatro vezes o preço da cordeira porquanto agiu com ganância e sem misericórdia.

            – Este homem, Davi. Este homem é você. Disse Natã ao Rei. – Assim diz o Senhor, o Deus de Jacó: “Eu o ungi rei de Israel e o livrei dos seus inimigos. Dei-lhe os reinos de Israel e Judá e se tudo isso não fosse o bastante lhe daria mais. Porque você desprezou a minha lei? Você matou Urias com a espada dos amonitas para ficar com sua mulher. Por isso a espada jamais se afastará da sua família e de dentro dela Eu trarei a desgraça sobre você.”

            Davi prostrou-se aos pés de Natã. Chorando confessou seu pecado e implorou o perdão de Deus. O profeta então o preveniu que embora o Senhor o perdoasse aquele filho que Betseba lhe dera, fruto de seu pecado, deveria morrer. Davi desesperava-se pela criança. Rasgou suas vestes reais, deixou de comer e passava as noites deitado no chão. Betseba e as demais mulheres, em tudo caladas, observavam seu infortúnio. Conspirações silenciosas tomavam forma. O rei sentia a necessidade de sofrer. Por sete dias a criança sofria a proximidade da morte e Davi assemelhava-se a um cão.

            A muito que preocupava aos conselheiros a conduta passional de Davi. A loucura e a morte rondavam o seu espírito, alheio a tudo estava o rei. Quando a criança morreu os conselheiros estudavam a melhor forma de lhe dar a notícia. Davi pressentiu o silêncio da morte no ar e entendeu que estava tudo consumado. Então se levantou do chão, lavou-se, trocou de roupa e pediu que lhe servissem um banquete. Pois ele sabia que nada mais se podia fazer.