Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Curso de Arte Poética


                    Contou-nos um dia um velho rapsodo da Província, na década 50: – Naquilo que me toca, poeta, já houve até quem me negasse valor nas 3.000 páginas, entre éditas e inéditas, que fazem parte de minha bagagem literária. Nada mais bateu com a minha autocrítica, porém, do que esta espontânea declaração de minha completa inutilidade no pretendido assalto aos domínios da poesia. Pois foi certamente a partir desse momento, que eu passei a ver quanto equívoco se alumbra na grande aventura da crítica e da poesia! E assim voltei, após tanta soalheira gasta em nonadas, a respirar com mais alento e profundidade os ares concentrados na maneira poética de ser, disponível como esponja, grava/dor. Reintegrei-me, portanto, às faíscas de um cotidiano-luz, palavra e cor, fragmentado e rico. E assim fui colhendo alguns desses retalhos, na boca do povo: – Pra quê tu queres dinheiro? Pra beber? – Num bebo, meu sinhô, só lá uma vez perdida... Os pólens da tarde caindo sobre jornais, bombas, assaltos, missa de sétimo dia. Sentava-me nos bancos da praça olhando-me nos outros, passageiros do vento, cúmplices da noite, farelos de mundo. – Quem é quem diante daquele incêndio? Voltei-me, era o pôr do sol. – Ora, a terra está na meia-idade, como a poesia dorme na criança. Antes de explodir, regressei ao trabalho. Vou começar tudo de novo. 

                   Muito já se falou, em determinado período de reformulação, numa pseudo crise ou morte da poesia. Desconhecemos se este fenômeno tenha causado algum susto aos poetas cuja autenticidade recusa a atrofia da acomodação. Naqueles que têm, no corpo do poema, o mesmo objeto de um pássaro que amola, diariamente, seu bico, no topo de uma montanha. Diz o brocardo que a “obstinação” do pássaro fica, exatamente, na outra ponta da eternidade... Há uma crise, no entanto, de meios que libertem a poesia. Uma crise de valores capaz de evoluir como negação da poesia. Uma crise, talvez, de harmonia entre progresso, cultura e civilização. Por que, de repente, ninguém mais escrevia? Os canais de comunicação fechavam-se para esse tipo de coisa, sem nem, com certeza, se darem conta de que é a poesia que gera o movimento de quantos insólitos divulgam a notícia, o perfume, as novelas, o comercial etc. Em consequência, a resposta. Um verdadeiro deslanche. Grafites, murifestos, sem compromisso, alternativos, marginais, entre outros, lançaram o maior desafio na tentativa de conciliar a poesia com a vida (e a luta) social, numa demonstração vitoriosa de que o mito do poético só existia por mero preconceito de normas estabelecidas –, o que deixava de ter sentido no reconhecimento de que o poético é tudo quanto surpreende, e jamais se repete. Tem forma individual ou coletiva, mas não se transfere impunemente. Podia-se ver, também, que para um grande poeta surgir, devia ser preciso que milhares de outros poetas estivessem produzindo e fazendo experiências. Guardadas as proporções, essa dinâmica tem algo a ver com o princípio físico que medeia entre a poeira cósmica e a formação das galáxias. Não é, pois, à toa que se faz referência aos “diluidores”. Mas há, em todo esse processo, uma outra dinâmica por demais complexa, a qual, se devidamente estudada, tende a revelar que um fluxo menor de poetas “menores” dificilmente estimula o aparecimento de um poeta maior. Homero, na Grécia Antiga, e Dante, na Itália, representam, além de coletores e intérpretes de sua época, as matrizes “genéticas” do idioma. Numa só palavra, as suas possibilidades. 

                   Em suma, porém, não é recomendável que se brinque de poeta, nem se faça da poesia um instrumento servil de outras artes, causas ou ciências, quando isso redunde em prejuízo de sua própria essência. “Mas – confia-nos ainda T. S. Eliot – a poesia, como qualquer outro elemento isolado da misteriosa personalidade social que chamamos nossa “cultura”, deve depender de inúmeras circunstâncias que ultrapassam seu controle (“A Essência da Poesia”, Artenova, 1972). Enfim, será ela a substância ainda desconhecida que induz às grandes insurreições. A cada despertar de poetas (ou de mágicos), submerge uma Atlântida.



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                   Caracterizando os gêneros literários, Nelly Novaes Coelho explica: “A divisão da poesia, em lírica e épica, que vem da Antiguidade greco-romana, vai perdurar até fins da era Clássica (séc. XVIII), quando o racionalismo clássico cede lugar à espontaneidade e ao sentimento romântico. Ao poder hierárquico das Classes, substitui-se o valor do indivíduo. As normas gerais da Arte cedem à liberdade individual do Artista. A poesia lírica torna-se a suprema voz dos novos tempos e de um novo homem que oscila entre a euforia vital e a depressão mortal, na busca de uma verdadeira sintonia entre o seu Eu e o novo mundo que lhe cabe construir. (§) Novas normas foram criadas pelo Romantismo e logo mais rompidas pelos novos movimentos que se sucedem, fazendo oscilar a gangorra Racionalismo x Intuição (Realismo, Parnasianismo, Decadentismo, Simbolismo), até chegar o grande cisma dos Ismos que explodem nos anos 10/20. (§§) Hoje, a poesia em sua profusa heterogeneidade formal e problemática, continua sendo (como os gregos a viram) a expressão mais fiel de um Eu que, tentando se encontrar ou se conhecer através do Outro, “filtra” o mundo através de uma assumida impassibilidade emocional. “Todos os caminhos conduzem à Roma...” (“Literatura & Linguagem”, Nelly Novaes Coelho, Ed. Quíron, 1986).