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Virtual macabro
Pedro Lindoso
Manhã de domingo. Ana Rosa e o marido, Clóvis,
tomam café da manhã, ainda com os corações compungidos com a ida à missa de
sétimo dia de Arminda, moradora no condomínio onde residem. Ana Rosa,
espantada, comenta com o marido que recebeu um e-mail de Arminda, ontem. Clóvis
lhe diz ser provavelmente algum engano. Ana Rosa não se convence. Não. O
horário registrado era ontem, depois da novela. A mensagem era definitivamente
do e-mail dela. O anexo continha fotos de Paris, com a música la vie em rose.
Tipo de e-mail que Arminda repassaria aos amigos. Deveria
estar enganada. Ana Rosa verificou que, além dela, a falecida se
comunicava por mensagens, pelo menos sem cópias ocultas, com mais três amigas:
Lucinda, Virgínia e Ademildes. Ana Rosa pensou em telefonar para Virgínia, a
única das três, que conhecia, vagamente. Perguntaria se teria recebido também o
estranho correio eletrônico, mas deixou para lá. Estava incomodada porque nada
havia mudado na casa da falecida. A varanda continuava com os mesmos vasos de flores.
No quarto, com a cortina entreaberta, viam-se roupas da morta no cabide. A cama
arrumada como sempre. Revistas e jornais no porta-revista. Palavras cruzadas e
uma caneta, em cima da mesinha da varanda. O único filho de Arminda, Adriano,
disse ao porteiro que iria morar no apartamento da praia, a uns dez quilômetros
dali. Não tomou nenhuma providência prática sobre o apartamento e as coisas da
sua mãe falecida. Na terça-feira, outro e-mail. Agora eram fotos de Praga,
República Tcheca. Na quarta, Ana Rosa recebeu lindas fotos de Portugal, com
música de Amália Rodrigues. Sempre no mesmo horário. Após o término da novela
das oito. Estava nervosa e assustada com os e-mails. Ninguém mais se chamava
Arminda nesse mundo. Só a falecida. O
e-mail era dela. Seria brincadeira de alguém? Hackers, como dizem. Mas para
quê? Com que finalidade? Ficou altamente abalada ao saber que Lucinda, amiga de
Arminda, que conhecera de vista no enterro, passou mal repentinamente. Isso na
última segunda-feira do mês, vindo a falecer ao dar entrada no hospital. No dia
seguinte, os e-mails continuavam. Fotos da Grécia, com a música de Zorba, o grego. Alguns dias se passaram e veio um e-mail com
paisagens argentinas ao som de La
Cumparsita. Ana Rosa resolveu ligar para Virgínia. A amiga disse que seu
computador havia dado pane e que estava sem internet antes mesmo do falecimento
da inesquecível Arminda. Ana Rosa não teve coragem de expor o motivo da ligação
e desconversou. Perguntou se Virgínia conhecera Lucinda. Virgínia a conhecia de
vista, mas uma amiga em comum disse-lhe que ela havia passado mal depois da
visita de uma mulher desconhecida, ruiva. Esse era o único detalhe que a
empregada se lembrava. E foi o detalhe dado aos parentes. Ninguém sabe quem é
essa tal ruiva. A única ruiva amiga de Lucinda era a falecida Arminda, já morta
e enterrada. Mas não deram muita importância, porque a morte foi diagnosticada
como parada cardíaca e as artérias dela estavam meio que comprometidas. Ana
Rosa perguntou ao porteiro se alguém da família havia ido ao apartamento. Ele
disse que só conhecia Arminda e o filho. Não recebiam visitas. Parentes moravam
longe, em outro estado. Eram mãe e filho. E só. O rapaz, de quase quarenta
anos, foi morar no apartamentinho da praia e vem pouco aí. Também não tem
amigos. Vivia grudado na mãe. Mas não tem aparecido. Quando vem, pega sempre
algumas coisas, que parecem ser roupas e sai logo. Adriano sempre foi muito
esquisito e caladão. Vinte dias se passaram e soube-se do atropelamento de
Ademildes. O carro, furtado, era dirigido por uma mulher ruiva. Encontraram o
veículo num barranco e a polícia investiga o caso. Vagarosamente, como de
costume. Ana Rosa ficava cada dia mais apavorada. Os e-mails continuavam.
Sempre após a novela das oito. Paisagens da Escandinávia, ao som das Quatro estações, de Vivaldi. Ana Rosa
andava com os nervos à flor da pele. Agora dava para receber telefonemas em seu
celular, do celular da amiga falecida. Um desassossego. Diariamente mandava
rezar missas para Arminda. Pensou em bloquear os e-mails, mas desistiu. Teve
então a ideia de deletar o e-mail de sua lista de contatos. Talvez assim, os
e-mails da morta parassem de aparecer. Ledo engano. Paisagens da Alemanha ao
som de músicas de Wagner. Era tudo muito tétrico e Ana Rosa estava com medo,
muito medo. Talvez fosse a um centro espírita. Um e-mail com fotos do Rio de
Janeiro, com músicas de Tom Jobim, foi o último dessa semana. Das quatro pessoas que recebiam e-mails de
Arminda, duas estavam mortas. A terceira estava sem usar o computador. E a
quarta era ela. Um frio na espinha. Um tremor constante. Passados três meses de
tanta agonia, resolveu que ligaria novamente para Virgínia. Os telefonemas do
celular da morta continuavam. O marido
de Virgínia lhe disse que ela havia feito uma cirurgia plástica. Passou mal e
não resistiu às complicações. Uma mulher ruiva desconhecida havia lhe feito uma
visita horas antes de partir. Mas isso era só um detalhe insignificante.
Perguntou se Ana Rosa conhecia alguma ruiva amiga de Virgínia. Ana Rosa lhe disse
que só conhecia a Arminda, que falecera havia quatro meses. Tudo muito
estranho. Novo telefonema do celular de Arminda. Teve a ideia de deletar o
número da amiga morta. Talvez os telefonemas parassem. Ninguém falava nada
mesmo. 30 segundos de silêncio e desligavam.
É apavorante. Agora só restava ela, das quatro amigas do e-mail. O marido, Clóvis, não lhe dava crédito. Dizia
que estava estressada e que deveria arrumar uma ocupação que a tirasse do
computador e da internet. Aquilo era um vício e estava deixando a mulher
maluca. Trocou o número do celular. Resolveu trocar de provedor. Pediu
cancelamento de seu e-mail. Por que não havia feito isso antes? Finalmente
parecia quer tinha paz. Sentia-se entretanto esquisita, como se tivesse matado
a amiga. No dia seguinte, soube que o filho de Arminda estava no apartamento.
Quis ir vê-lo. O porteiro achou tudo muito estranho. O rapaz, o tal de Adriano,
entrou ontem, e está lá até agora. Nunca ficou tanto tempo. Já liguei no
interfone e ninguém responde. O telefone fixo também não respondia. O porteiro
já tinha tocado na campainha e nada. Ana Rosa lamentou ter deletado o telefone
celular da falecida. Chamaram a polícia. O rapaz estava no banheiro. Morto por
asfixia de gás. Vestido com a camisola da mãe, devidamente maquiado e com
peruca ruiva, igualzinha a da falecida.