Amigos do Fingidor

domingo, 29 de julho de 2012

Bandeira – um artista resistente

Tenório Telles



   No belo poema “Promessa”, a poetisa portuguesa Sophia Brayner Andresen faz uma declaração de compromisso com a liberdade: “Na clara paisagem essencial e pobre / Viverei segundo a lei da liberdade / Segundo a lei da exacta eternidade”. Os versos da escritora traduzem o desafio de ser livre num tempo ameaçador para o livre pensar e o direito de ser. Tempo de banalidades, arrogância e perda dos valores.  

   O antídoto a esse estado de degradação espiritual e conformismo é a arte. A beleza e a verdade nos salvarão da barbárie e da indiferença que nos paralisam. Os criadores têm a missão de opor resistência a essas forças que ameaçam o sonho e ultrajam a vida. Contra o medo e o adesismo, os artistas de verdade têm a responsabilidade de dizer não ao cerceamento da palavra e da consciência. O instrumento de que dispõem para esse ofício é a paixão e o fogo transformador de sua criação artística. O fato é que poucos conseguem resistir e se manter fiéis à liberdade e à honestidade de seu trabalho criativo. 

   O escritor Jorge Bandeira é um exemplo de artista resistente, cada dia mais raro na cena cultural brasileira. A regra é a submissão aos poderes e o silêncio diante do ultraje da vida. O trabalho criativo de Bandeira é afirmativo de seu compromisso com uma concepção de arte fundada na realidade e atitude crítica diante dos descaminhos do mundo. O tom predominante em seus textos e perfomances artísticas é o questionamento, a reflexão e a denúncia da virtualização das relações sociais e do que é viver nesta sociedade em que tudo virou objeto de consumo, inclusive o ser humano, que deixou de ser gente, cidadão... e se transformou em cliente e consumidor. Buscar-se, em meio a essas perdas, é uma forma de afirmação da singularidade, de romper com a condição de objeto.  

   A independência tem assegurado ao artista Jorge Bandeira algo imperativo a todo criador: a liberdade para discutir e publicizar suas ideias e construir o artesanato de sua obra. Polivalente e inquieto, reúne em si vários pendores: é ator, dramaturgo, tradutor, crítico de arte, professor e cantor. Seus mais recentes trabalhos são ilustrativos de sua opção por uma postura artística resistente e de combate: 22 lâminas, seu penúltimo espetáculo dramático, é uma reflexão, a partir dos arcanos do Tarot, sobre a existência, o poder e a condição humana. Mais recentemente montou Contatos imediatos de 3º grau, de Márcio Souza, em que se problematiza o impacto da tecnologia sobre os povos indígenas e o processo de alienação dos indivíduos.  

Bandeira traduziu A caçada do Snark, de Lewis Carroll.
   Jorge Bandeira faz parte de uma tradição de criadores: dos que resistiram à sedução do poder e se conservaram produtivos e independentes, pondo suas criações a serviço da mudança, da liberdade e da construção de uma consciência questionadora e cidadã. Essa postura é fruto de sua convicção de que o artista deve ter discernimento de sua responsabilidade diante de um mundo insensível e refratário à beleza e ao bem. Bandeira é herdeiro da linhagem artística de Baudelaire, Artaud, Beckett, Oswald de Andrade, Wagner Mello, entre outros. Como dizia Drummond, a condição desses artistas é ser “gauche na vida”, ser navegante da outra margem, dos que negam os que afirmam toda forma de poder e dominação do ser. Jorge Bandeira, pela sua resistência e conteúdo humano de sua obra, é um artista do seu tempo, sobretudo porque não traiu seus princípios e o seu coração.

Obs: publicado dia 28.07.12, no jornal A Crítica.