Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A medicina e o mecanicismo


João Bosco Botelho

 

          A principal diferença entre a Medicina-oficial – reconhecida pelo poder dominador, desde os primeiros registros – das outras práticas de curas reside no fato de estar assentada em torno de processos teóricos para desvendar a materialidade da doença, em dimensões cada vez menores da matéria viva, apoiando a terapêutica e o prognóstico.

          Um desses processos teóricos – o mecanicismo – teve profunda influência na Medicina-oficial, a partir do século 16, que pode ser sentida nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): “Aquilo que acontece no concreto, acontece do mesmo modo no abstrato; os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador, que não sabe calcular”.

A forte afirmação de Galileu retratou o pensamento dominante renascentista: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens. As novas estruturas conceituais do homem-máquina substituíram as de homem-fábrica, oriundas dos tempos greco-romano, hipocrático-galênico. Como consequência, os homens começaram a medir a máquina humana em níveis nunca antes imagináveis.

O médico Santório (1561-1636), um dos primeiros a aplicar a Medicina às novas concepções de medir o visível nos corpos: ritmo da respiração, temperatura e quantidade de urina e fezes. Comparando o peso do alimento ingerido com o excretado, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias parte do que era ingerido. Denominou essa perda de respiração invisível, construindo o pioneirismo na ideia do que depois seria reconhecido como metabolismo nasal (conjunto de reações químicas endógenas para a produção de energia indispensável ao ser humano).

Grande parte da produção de Santório foi publicada, em 1614, no livro Distatica Medicina, descrevendo o homem-fábrica, onde os fenômenos biológicos foram reduzidos a simples fenômenos físico-químicos.

Contudo, a maior dificuldade dos mecanicistas era entender a interligação do conjunto. Não houve empecilho comparar pulmão ao fole, dente à tesoura, estômago à garrafa, porém não estabeleceram relação coerente entre as partes.

Um aluno de Santório, Marcelo Malpighi (1626-1696), foi o maior expoente desse período de construção dos saberes da Medicina. As ideias dele introduziram o pensamento micrológico, que sob o pensamento de Gastón Bachelar (1884-1962), considero o segundo corte epistemológico da Medicina: o estudo da microestrutura.

É possível afirmar, sem risco de errar na imprudência do exagero, que após as publicações de Malpighi, a Medicina começou a desvendar a arqueologia da saúde e da doença. A histologia, o estudo das microscopias dos tecidos, consequências das indagações de Malpighi, trouxe a doença da macroestrutura (corpo) para a microestrutura (célula).

Esse fato abriu a porta da Medicina da atualidade em torno do diagnóstico microscópico: a identificação da bactéria e do tumor.