Amigos do Fingidor

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Sífilis: doença e pecado


João Bosco Botelho

 

Desde os primeiros registros nas tábuas de escrita cuneiforme, é possível identificar a falsa relação doença-pecado, para intervir no controle social.

Hoje, a sífilis não representa perigo à sobrevivência. O diagnóstico é realizado facilmente e o tratamento se efetiva com alguns comprimidos. Porém, nem sempre foi assim. Essa doença representou estigma aliado à certeza da incapacidade física, da loucura e da morte precoce.

O médico Girolamo Fracastoro (1483-1553), nascido em Verona, na Itália, em 1521, publicou o livro que o imortalizou: Syphilis Sive Morbus Gallicus, escrito em versos no puro estilo virgiliano. O personagem central é um pastor devotado e amando tanto o seu rei acabou por divinizá-lo. Como castigo, sofreu a fúria divina, sob a forma da doença desconhecida, que Fracastoro denominou syphilis. Os versos começam estabelecendo o caráter epidêmico da sífilis:

 Vi vários casos de uma semente má desconhecida

 Traziam expostas já de algum tempo

 Por toda Europa, parte da Ásia e da Líbia qual tempestade

 Irrompeu no Lácio, por causa da triste guerra dos gauleses

 e recebeu o nome daquela gente

Nos versos 76-80 e 113-115 do livro I, o genial Fracastroro associou, claramente, a sífilis com a sexualidade:

 Quando nas pastagens ao lar livro longamente: e então

 se firmaram os vícios

            Oh! tu que esperas a liberdade pelo trabalho

 Pouco te opões ao cuidado que a todos domina

 Princípios: com esforço de memória guarda estes preceitos

 Embora pouco os prazeres do amor: moleste a face toda a vida

Em decorrência do completo desconhecimento que envolvia a doença, naquela época, era conhecida por diversos nomes: mal de Nápoles, mal alemão, mal dos cristãos e mal dos judeus. É evidente que cada grupo social tratou de atribuir ao inimigo mais próximo o perigo que comprometia a segurança coletiva.

Em 1905, Fritz Schaudinn identificou a bactéria da sífilis: Treponema pallidum. Em 1910, o médico Paul Ehrlich propôs o primeiro tratamento curativo: um composto arsênico. Em pouco tempo, celebrado como o conquistador da sífilis, recebeu o Prêmio Nobel da Medicina.

A sífilis e todas as enfermidades que acometem a humanidade não são consequências de pecados. Representam parte do processo de adaptação da espécie humana no planeta, onde também coexistem incontáveis seres microscópicos que podem causar doenças.