João Bosco Botelho
Do
sangue à terra cultivada
As dezenas
de milhares de anos nas quais os caçadores-coletores permaneceram em relação
direta com a natureza animal, de onde retiravam o sustento, deixaram traços bem
definidos na nova adaptação sedentária, frente às mudanças provocadas pelo
cultivo da terra e pastoreio.
As anteriores relações míticas do homem com o
animal que predominaram no universo mítico do homem pré‑histórico caçador-coletor
foram modificadas junto às práticas agrícolas. A ordem anterior foi substituída
pela solidariedade mítica com o vegetal cultivado. O osso e o sangue foram
deslocados pela terra e pelo esperma; o arado sulcava e germinava a terra, como
o pênis, a mulher fértil. Ao mesmo tempo, ocorreu a ascensão da mulher no novo
espaço social, reconhecida, tal como a Mãe‑Terra.
Essa mudança
está muito forte na arte rupestre, que assumiu aspecto naturalista, ao
contrário da precedente dos caçadores-coletores, predominantemente esquemática
e geométrica. O simbolismo sexual se tornou evidente nas esculturas dos arados em
forma de falo e das figuras femininas obesas com enormes mamas, conhecidas como
Vênus Pré‑históricas. O pênis, ao penetrar na mulher para fecundar,
naturalmente, se comparou ao arado rasgando a Mãe‑Terra para germinar o
alimento.
Os vestígios desse
universo mítico, da esperança da vida após a morte, na cultura neolítica,
parecem ter recebido muitos elementos metafóricos oriundos dos novos valores da
terra cultivada e renovados, periodicamente, no ciclo eterno da natureza
visível.
A antiga dispersão mítica se concentrou nos
valores do espaço definido: a aldeia. Nessa fase, apareceram os primeiros
lugares urbanos consagrados exclusivamente à divindade – o templo –, cujos
responsáveis detinham o conhecimento historicamente acumulado, para explicar o
curso da natureza, por isso se portavam como intermediários do transcendente.
Essa complexa sequência da transição do
imenso espaço do caçador-coletor à pequenez da aldeia, pode ter consolidado as
idéias religiosas, não só pela agricultura, de onde saía o alimento, mas também
no mistério da gestação, ambos inseridos na nova consciência coletiva, identificada
no ritmo da vida dos vegetais, no processo eterno de renovação do mundo.
Existem exemplos de mitos que relacionam o
homem ao produto da terra cultivada que garante a vida.
Os nativos da ilha do Ceram, na Nova Guiné, onde
do corpo retalhado de uma jovem semidivina, Hainuwele, crescem plantas até então
desconhecidas, que oferecem o alimento necessário à sobrevivência. Semelhante, o
mito amazônico do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, descreve o drama da
morte do filho da índia Onhiamuacabe e do seu renascimento através dos olhos
plantados na terra molhada, dando origem, do lado esquerdo, ao falso guaraná
uaraná‑hôp, e do direito ao verdadeiro guaraná uaraná‑cécé, que seria usado
para alimentar e curar as doenças.
A significação dos mitos nascidos da relação
do homem com a terra é clara: os alimentos são sagrados por derivarem da Mãe‑Terra.