Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Mãe-Terra: pressuposto da fome saciada 2


João Bosco Botelho


Do sangue à terra cultivada
 

    As dezenas de milhares de anos nas quais os caçadores-coletores permaneceram em relação direta com a natureza animal, de onde retiravam o sustento, deixaram traços bem definidos na nova adaptação sedentária, frente às mudanças provocadas pelo cultivo da terra e pastoreio.

    As anteriores relações míticas do homem com o animal que predominaram no universo mítico do homem pré‑histórico caçador-coletor foram modificadas junto às práticas agrícolas. A ordem anterior foi substituída pela solidariedade mítica com o vegetal cultivado. O osso e o sangue foram deslocados pela terra e pelo esperma; o arado sulcava e germinava a terra, como o pênis, a mulher fértil. Ao mesmo tempo, ocorreu a ascensão da mulher no novo espaço social, reconhecida, tal como a Mãe‑Terra.

 Essa mudança está muito forte na arte rupestre, que assumiu aspecto naturalista, ao contrário da precedente dos caçadores-coletores, predominantemente esquemática e geométrica. O simbolismo sexual se tornou evidente nas esculturas dos arados em forma de falo e das figuras femininas obesas com enormes mamas, conhecidas como Vênus Pré‑históricas. O pênis, ao penetrar na mulher para fecundar, naturalmente, se comparou ao arado rasgando a Mãe‑Terra para germinar o alimento.

 Os vestígios desse universo mítico, da esperança da vida após a morte, na cultura neolítica, parecem ter recebido muitos elementos metafóricos oriundos dos novos valores da terra cultivada e renovados, periodicamente, no ciclo eterno da natureza visível.

    A antiga dispersão mítica se concentrou nos valores do espaço definido: a aldeia. Nessa fase, apareceram os primeiros lugares urbanos consagrados exclusivamente à divindade – o templo –, cujos responsáveis detinham o conhecimento historicamente acumulado, para explicar o curso da natureza, por isso se portavam como intermediários do transcendente.

    Essa complexa sequência da transição do imenso espaço do caçador-coletor à pequenez da aldeia, pode ter consolidado as idéias religiosas, não só pela agricultura, de onde saía o alimento, mas também no mistério da gestação, ambos inseridos na nova consciência coletiva, identificada no ritmo da vida dos vegetais, no processo eterno de renovação do mundo.

    Existem exemplos de mitos que relacionam o homem ao produto da terra cultivada que garante a vida.

    Os nativos da ilha do Ceram, na Nova Guiné, onde do corpo retalhado de uma jovem semidivina, Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas, que oferecem o alimento necessário à sobrevivência. Semelhante, o mito amazônico do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, descreve o drama da morte do filho da índia Onhiamuacabe e do seu renascimento através dos olhos plantados na terra molhada, dando origem, do lado esquerdo, ao falso guaraná uaraná‑hôp, e do direito ao verdadeiro guaraná uaraná‑cécé, que seria usado para alimentar e curar as doenças.

    A significação dos mitos nascidos da relação do homem com a terra é clara: os alimentos são sagrados por derivarem da Mãe‑Terra.