Amigos do Fingidor

segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Chile de Neruda 1/2


Tainá Vieira

 

 

Da janelinha do avião mira-se uma paisagem inesquecível. A mesma paisagem vista inúmeras vezes pelo seu filho maior, Pablo Neruda. Sim, estou falando da Cordilheira dos Andes. Uma vasta cadeia montanhosa que atravessa sete países da América do Sul, os chamados países andinos. Um deles o Chile, que tem como capital Santiago, esta que me hospedou por sete dias. Era um dos meus sonhos conhecer esse país tão demasiadamente colorido e elegantemente frio. E principalmente famoso pelos seus vinhos maravilhosos, seu vale Nevado e mais ainda pelo seu filho, prêmio Nobel de literatura, o louvado Pablo Neruda,  motivo máximo de minha viagem. Assim que pus os pés em Santiago, senti uma energia estranhamente boa apossar-se do meu corpo, que entrou pelos meus pés e saiu pela minha boca. Acho que era porque tinha que hablar español por uns dias. Tarefa que receberia a nota 8,5 numa prova oral. É uma língua bonita de se falar e difícil de compreender, quando falado rapidamente. É necessário muita atenção para se comunicar, ser entendido  e não ouvir dos hermanos chilenos a palavra em tom de “quase” menosprezo: brasileña? Pois eles compreendem muito bem o nosso portunhol. Eu ouvi essa frase algumas vezes. De resto, quanto ao quesito falar espanhol, eu diria que foi gratificante.

Mas não fui ao Chile gastar dinheiro. Não fui simplesmente viajar por aquele país. Não, minha viagem tinha outro motivo. Conhecer um pouco da vida de Pablo Neruda. Minha missão no Chile. Pablo Neruda que é considerado o maior poeta chileno e um dos maiores da America do Sul. É através das casas de Pablo Neruda que se pode conhecer um pouco desse poeta, que lutou e amou seu povo até a morte. Em 1953, constrói sua casa em Santiago, apelidada de La Chascona, para se encontrar clandestinamente com sua amante Matilde Urrutia, que viria ser sua terceira esposa e o acompanharia até o seu ultimo dia de vida. A casa tem o nome La Chascona (que significa “a descabelada” na língua indigena quíchua) porque Maltide tinha uma enorme cabeleira. A ela Neruda dedica os versos:

Me falta tempo para celebrar teus cabelos.

Um por um devo contá-los e louvá-los:

outros amantes querem viver com certos olhos,

eu só quero ser penteador de teus cabelos.

(“Soneto XIV”, de Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar)

La Chascona, localizada no bairro Bellavista, La Sebastiana, na cidade de Valparaíso,  e Isla Negra são casas-museus de Pablo Neruda.  As casas lembram barcos. São casas bem diferentes de quaisquer outras que já se tenha visto. La Chascona é uma casa divida em três partes, unidas por escadas e caminhos, e  tem um belo jardim. Diz-se que eram duas casas, uma de Pablo e outra de Matilde, e que Pablo abriu uma passagem para ambos transportarem-se, um para a casa do outro. A casa funciona como museu e como biblioteca do autor. As visitas sempre são acompanhadas de guia, em língua espanhola e inglesa. La Sebastiana está localizada no cerro Bellavista, em Valparaíso, e, com seu formato de barco, tem-se uma visão de sonho do Pacífico. Dá a impressão de que o barco logo irá partir. Isla Negra, a casa favorita de Pablo Neruda, foi seu ultimo lar. Lá ele viveu seu amor intenso com sua amada Matilde. Em seu livro Confesso que vivi, Pablo Neruda, falando sobre a mulher, diz:

Minha mulher é da província como eu. (...) Ao falar-lhe, disse-lhe tudo em meus Cem Sonetos de Amor. Talvez estes versos definam o que ela significa para mim. A vida e a terra nos reuniu. Ainda que não interesse a ninguém, somos felizes. Dividimos nosso tempo comum em longas temporadas na solitária costa do Chile.

(“Matilde Urrutia, minha mulher”, tradução de Olga Savary)

 Isla Negra é o nome da praia onde a casa está localizada, um lugar lindo à margem do oceano pacífico. Fica num pequeno distrito de pescadores da região e não é uma ilha – o adjetivo é uma referência a cor predominante das rochas que tornam a praia inviável para o banho de mar. No caminho, a guia repete a piada cotidiana: alguém já ouviu falar do poeta chileno Neftalí Ricardo Reyes Basoalto? Silêncio. E de Pablo Neruda? É claro que todos iam a Isla Negra por causa do escritor, ignorando que aquele nome estranho era o seu nome verdadeiro. O pseudônimo é uma homenagem ao poeta francês Paul Verlaine e a um escritor checo, Jan Neruda.

A casa de Isla Negra é única, não há outra casa no mundo como a de Pablo. Na verdade, são varias casas em uma. Ora se está em uma casa de pedra, ora em uma casa de madeira. Cada cômodo da casa nos deixa com a impressão de que estamos em lugares diferentes: há uma parte que tem o formato de um vagão de trem, homenagem ao seu pai que era ferroviário; outra parte é um barco. A casa abriga várias coleções do autor, pois Pablo era um grande colecionador: há mais de 3.000 objetos do mundo todo espalhado por toda casa. Infelizmente, não se pode fotografar na área interna. Numa das portas, há um tapete feito só de conchinhas, inclusive conchinhas do Brasil, levadas para lá pelo seu amigo Jorge Amado.  Em cima de uma das mesas de centro há uma coleção de taças de vinho. Há um compartimento da casa só para as garrafas, são inúmeras garrafas coloridas. O quarto que Pablo dividia com Matilde é um lugar lindo. Há uma parede de vidro de frente para o Pacífico. A cama está posicionada de um jeito que a cabeça fica em direção ao nascer do sol e os pés ao pôr-do-sol. No quarto está a coleção de chapéus do poeta, a penteadeira de Matilde, um guarda-roupa com as letras P e M na porta, os diversos ternos usados pelo poeta, incluindo o traje que ele usou para receber o prêmio Nobel de literatura, em 1971. No quintal da casa há um barco, onde o comandante Neruda reunia com amigos em imaginárias viagens mar adentro. Há também um sino que Neruda tocava quando os amigos chegavam. Em Isla Negra está o túmulo do poeta e da esposa. Como quis o autor.

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,

diante do mar que conheço, de cada área rugosa

de pedras e ondas que meus olhos perdidos

não tornarão a ver.

(“Disposições”, do livro Canto Geral, tradução de Paulo Mendes Campos)

Pablo Neruda faleceu em 23 de setembro de 1973, aos 69 anos, de câncer na próstata, numa clinica em Santiago. Mas essa é a versão oficial. Está em curso a investigação de um possível assassinato. Foi enterrado sem cerimônia, em Santiago, sob o testemunho de militares de Pinochet. Mesmo morto, o poeta querido pelo povo assombrava-os. Somente 19 anos depois, com a restauração da democracia, seu corpo foi levado a Isla Negra, foi então realizada uma cerimônia com a presença de muitos amigos, e sob o olhar do povo que tanto o amava. Depois de conhecer a casa de Neruda, é possível descer à praia, onde há um “moai” (escultura inspirada na cultura rapa nui, da Ilha de Páscoa), esculpido em uma das rochas, representando a cabeça do poeta, olhando o mar sem fim. O túmulo de Neruda fica de frente para o oceano, com a trilha sonora das ondas, batido pela brisa fria do Pacífico. Fiquei um tempo observando: ora mirava o túmulo, ora mirava o mar. Nem sei descrever o que senti naquele momento. Só sei que esse momento permanecerá para sempre gravado na minha memória, assim como a poesia de Pablo Neruda.
 
Publicado originalmente na revista Valer Cultural, n° 4.
Fotos: Tainá Vieira.
 
Detalhe da casa de Neruda, em Isla Negra.

A parte de pedra da casa de Neruda, em Isla Negra.