Tainá Vieira
Da
janelinha do avião mira-se uma paisagem inesquecível. A mesma paisagem vista
inúmeras vezes pelo seu filho maior, Pablo Neruda. Sim, estou falando da
Cordilheira dos Andes. Uma vasta cadeia montanhosa que atravessa sete países da
América do Sul, os chamados países andinos. Um deles o Chile, que tem como
capital Santiago, esta que me hospedou por sete dias. Era um dos meus sonhos
conhecer esse país tão demasiadamente colorido e elegantemente frio. E
principalmente famoso pelos seus vinhos maravilhosos, seu vale Nevado e mais
ainda pelo seu filho, prêmio Nobel de literatura, o louvado Pablo Neruda, motivo máximo de minha viagem. Assim que pus
os pés em Santiago, senti uma energia estranhamente boa apossar-se do meu corpo,
que entrou pelos meus pés e saiu pela minha boca. Acho que era porque tinha que
hablar español por uns dias. Tarefa
que receberia a nota 8,5 numa prova oral. É uma língua bonita de se falar e
difícil de compreender, quando falado rapidamente. É necessário muita atenção
para se comunicar, ser entendido e não
ouvir dos hermanos chilenos a palavra
em tom de “quase” menosprezo: brasileña?
Pois eles compreendem muito bem o nosso portunhol. Eu ouvi essa frase algumas
vezes. De resto, quanto ao quesito falar espanhol, eu diria que foi
gratificante.
Mas não fui ao Chile gastar dinheiro.
Não fui simplesmente viajar por aquele país. Não, minha viagem tinha outro
motivo. Conhecer um pouco da vida de Pablo Neruda. Minha missão no Chile. Pablo
Neruda que é considerado o maior poeta chileno e um dos maiores da America do
Sul. É através das casas de Pablo Neruda que se pode conhecer um pouco desse
poeta, que lutou e amou seu povo até a morte. Em 1953,
constrói sua casa em Santiago, apelidada de La
Chascona, para se encontrar clandestinamente com sua amante Matilde
Urrutia, que viria ser sua terceira esposa e o acompanharia até o seu ultimo
dia de vida. A casa tem o nome La
Chascona (que significa “a descabelada” na língua indigena quíchua) porque
Maltide tinha uma enorme cabeleira. A ela Neruda dedica os versos:
Me falta tempo para celebrar teus
cabelos.
Um por um devo contá-los e louvá-los:
outros amantes querem viver com
certos olhos,
eu só quero ser penteador de teus
cabelos.
(“Soneto XIV”, de Cem sonetos de amor, tradução de Carlos
Nejar)
La Chascona,
localizada no bairro Bellavista, La
Sebastiana, na cidade de Valparaíso,
e Isla Negra são casas-museus de
Pablo Neruda. As casas lembram barcos.
São casas bem diferentes de quaisquer outras que já se tenha visto. La Chascona é uma casa divida em três
partes, unidas por escadas e caminhos, e
tem um belo jardim. Diz-se que eram duas casas, uma de Pablo e outra de
Matilde, e que Pablo abriu uma passagem para ambos transportarem-se, um para a
casa do outro. A casa funciona como museu e como biblioteca do autor. As
visitas sempre são acompanhadas de guia, em língua espanhola e inglesa. La Sebastiana está localizada no cerro
Bellavista, em Valparaíso, e, com seu formato de barco, tem-se uma visão de
sonho do Pacífico. Dá a impressão de que o barco logo irá partir. Isla Negra, a casa favorita de Pablo
Neruda, foi seu ultimo lar. Lá ele viveu seu amor intenso com sua amada
Matilde. Em seu livro Confesso que vivi,
Pablo Neruda, falando sobre a mulher, diz:
Minha mulher é da província como eu.
(...) Ao falar-lhe, disse-lhe tudo em meus Cem
Sonetos de Amor. Talvez estes versos definam o que ela significa para mim.
A vida e a terra nos reuniu. Ainda que não interesse a ninguém, somos felizes.
Dividimos nosso tempo comum em longas temporadas na solitária costa do Chile.
(“Matilde Urrutia, minha mulher”,
tradução de Olga Savary)
Isla
Negra é o nome da praia onde a casa está localizada, um lugar lindo à
margem do oceano pacífico. Fica num pequeno distrito de pescadores da região e
não é uma ilha – o adjetivo é uma referência a cor predominante das rochas que
tornam a praia inviável para o banho de mar. No caminho, a guia repete a piada
cotidiana: alguém já ouviu falar do poeta chileno Neftalí
Ricardo Reyes Basoalto? Silêncio. E de Pablo Neruda? É claro que todos iam a
Isla Negra por causa do escritor, ignorando que aquele nome estranho era o seu
nome verdadeiro. O pseudônimo é uma homenagem ao poeta francês Paul Verlaine e
a um escritor checo, Jan Neruda.
A casa de Isla Negra é única, não há
outra casa no mundo como a de Pablo. Na verdade, são varias casas em uma. Ora
se está em uma casa de pedra, ora em uma casa de madeira. Cada cômodo da casa
nos deixa com a impressão de que estamos em lugares diferentes: há uma parte
que tem o formato de um vagão de trem, homenagem ao seu pai que era
ferroviário; outra parte é um barco. A casa abriga várias coleções do autor,
pois Pablo era um grande colecionador: há mais de 3.000 objetos do mundo todo
espalhado por toda casa. Infelizmente, não se pode fotografar na área interna.
Numa das portas, há um tapete feito só de conchinhas, inclusive conchinhas do Brasil,
levadas para lá pelo seu amigo Jorge Amado.
Em cima de uma das mesas de centro há uma coleção de taças de vinho. Há
um compartimento da casa só para as garrafas, são inúmeras garrafas coloridas.
O quarto que Pablo dividia com Matilde é um lugar lindo. Há uma parede de vidro
de frente para o Pacífico. A cama está posicionada de um jeito que a cabeça
fica em direção ao nascer do sol e os pés ao pôr-do-sol. No quarto está a
coleção de chapéus do poeta, a penteadeira de Matilde, um guarda-roupa com as letras
P e M na porta, os diversos ternos usados pelo poeta, incluindo o traje que ele
usou para receber o prêmio Nobel de literatura, em 1971. No quintal da casa há
um barco, onde o comandante Neruda reunia com amigos em imaginárias viagens mar
adentro. Há também um sino que Neruda tocava quando os amigos chegavam. Em Isla
Negra está o túmulo do poeta e da esposa. Como quis o autor.
Companheiros, enterrai-me em Isla
Negra,
diante do mar que conheço, de cada
área rugosa
de pedras e ondas que meus olhos
perdidos
não tornarão a ver.
(“Disposições”, do livro Canto Geral, tradução de Paulo Mendes
Campos)
Pablo Neruda faleceu em
23 de setembro de 1973, aos 69 anos, de câncer na próstata, numa clinica em
Santiago. Mas essa é a versão oficial. Está em curso a investigação de um
possível assassinato. Foi enterrado sem cerimônia, em Santiago, sob o
testemunho de militares de Pinochet. Mesmo morto, o poeta querido pelo povo
assombrava-os. Somente 19 anos depois, com a restauração da democracia, seu
corpo foi levado a Isla Negra, foi então realizada uma cerimônia com a presença
de muitos amigos, e sob o olhar do povo que tanto o amava. Depois de conhecer a
casa de Neruda, é possível descer à praia, onde há um “moai” (escultura inspirada na cultura rapa nui, da Ilha de Páscoa), esculpido
em uma das rochas, representando a cabeça do poeta, olhando o mar sem fim. O
túmulo de Neruda fica de frente para o oceano, com a trilha sonora das ondas,
batido pela brisa fria do Pacífico. Fiquei um tempo observando: ora mirava o
túmulo, ora mirava o mar. Nem sei descrever o que senti naquele momento. Só sei
que esse momento permanecerá para sempre gravado na minha memória, assim como a
poesia de Pablo Neruda.
Publicado originalmente na revista Valer Cultural, n° 4.
Fotos: Tainá Vieira.
Detalhe da casa de Neruda, em Isla Negra. |
A parte de pedra da casa de Neruda, em Isla Negra. |