Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O cólera: doença da miséria social


João Bosco Botelho


 

            O cólera-morbo já era conhecido pelos navegantes árabes e europeus que viajavam pelos grandes rios na Ásia meridional, pelo menos cinco séculos antes de Cristo. Os gregos chamavam a doença do kholera ou fluxo de bílis e os sinais se manifestavam com diarréia grave, vômitos incoercíveis, hematomas em várias partes do corpo, emagrecimento rápido e a morte após alguns dias ou mesmo horas depois de a enfermidade ter se instalado.

            É possível que a designação kholera tenha surgido na Escola de Cós, no século 4 a.C., quando a mortalidade da doença recebeu a explicação por meio da teoria dos Quatro Humores. Segundo essa teoria, a saúde seria consequente do equilíbrio entre os quatro humores fundamentais que regulam as funções corpóreas: sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso negro. O excesso de um humor determinaria as doenças. No cólera, o humor bilioso preto seria o determinante do quadro clínico. O tratamento de todas as moléstias, inclusive do cólera, seria obtido pela eliminação dos humores, provocada com a ajuda dos vomitórios e purgativos.

            Os registros indicam que, em 1817, ocorreram surtos em Calcutá, tendo alcançado a China, na mesma época. Em 1821, se disseminou no Irã, e a devastação foi de tal gravidade que facilitou a conquista de grande parte do território pela Rússia. Por outro lado, milhares de soldados russos morreram durante os primeiros meses da ocupação militar.

            Em janeiro de 1832, a epidemia alcançou o porto francês Calais, na época, importante entreposto comercial entre Oriente e Ocidente, fato que contribuiu na propagação do cólera em outros países europeus. Dois meses mais tarde, somente na França, o cólera-morbo matou mais de cento e quarenta mil pessoas.

            Semelhante ao que ocorreu em alguns episódios da peste negra, na Europa, especialmente na França e Alemanha, o medo coletivo da morte, atribuiu aos judeus o “envenenamento da população por meio de bruxaria e culto pagão”. Sob essa falsidade, milhares de famílias judias foram massacradas e queimadas nas fogueiras de lenha verde. O Prefeito de Paris ofereceu, em dezembro de1832, generosa recompensa para quem desse a informação correta do culpado.

Essa triste realidade, o massacre de culpados imaginários quando sociedades sentem medo da morte fora de controle, tem se repetido, em muitas ocasiões, desde os primeiros registros escritos. A população do Haiti, com a totalidade composta abaixo da linha de pobreza, devastada pela crônica corrupção das instituições e várias catástrofes climáticas, sentindo-se desamparada para conter o surto do cólera, que já atingiu mais de 80.000 pessoas com 2.000 mortos, linchou quatorze pessoas acusadas de “praticar bruxaria e trazer a epidemia para a região” com golpes de facão, pedradas e os corpos esquartejados e queimados nas ruas.

Ao longo dos processos sociais, nos tempos marcados pelo medo pessoal e coletivo da possibilidade de morte antecipada, especialmente, nas epidemias fora de controle, as buscas dos culpados imaginados permeiam toda a brutalidade que as pessoas podem perpetrar.