João Bosco Botelho
O cólera-morbo já era conhecido
pelos navegantes árabes e europeus que viajavam pelos grandes rios na Ásia
meridional, pelo menos cinco séculos antes de Cristo. Os gregos chamavam a
doença do kholera ou fluxo de
bílis e os sinais se manifestavam com diarréia grave, vômitos
incoercíveis, hematomas em várias partes do corpo, emagrecimento rápido e a morte
após alguns dias ou mesmo horas depois de a enfermidade ter se instalado.
É possível que a designação kholera
tenha surgido na Escola de Cós, no século 4 a.C., quando a mortalidade
da doença recebeu a explicação por meio da teoria dos Quatro Humores. Segundo essa
teoria, a saúde seria consequente do equilíbrio entre os quatro humores
fundamentais que regulam as funções corpóreas: sanguíneo, linfático, bilioso
amarelo e bilioso negro. O excesso de um humor determinaria as doenças. No
cólera, o humor bilioso preto seria o determinante do quadro clínico. O
tratamento de todas as moléstias, inclusive do cólera, seria obtido pela eliminação
dos humores, provocada com a ajuda dos vomitórios e purgativos.
Os registros indicam que, em 1817, ocorreram
surtos em Calcutá, tendo alcançado a China, na mesma época. Em 1821, se
disseminou no Irã, e a devastação foi de tal gravidade que facilitou a
conquista de grande parte do território pela Rússia. Por outro lado, milhares
de soldados russos morreram durante os primeiros meses da ocupação militar.
Em janeiro de 1832, a epidemia
alcançou o porto francês Calais, na época, importante entreposto comercial
entre Oriente e Ocidente, fato que contribuiu na propagação do cólera em outros
países europeus. Dois meses mais tarde, somente na França, o cólera-morbo matou
mais de cento e quarenta mil pessoas.
Semelhante ao que ocorreu em alguns
episódios da peste negra, na Europa, especialmente na França e Alemanha, o medo
coletivo da morte, atribuiu aos judeus o “envenenamento da população por meio
de bruxaria e culto pagão”. Sob essa falsidade, milhares de famílias judias
foram massacradas e queimadas nas fogueiras de lenha verde. O Prefeito de Paris
ofereceu, em dezembro de1832, generosa recompensa para quem desse a informação
correta do culpado.
Essa
triste realidade, o massacre de culpados imaginários quando sociedades sentem
medo da morte fora de controle, tem se repetido, em muitas ocasiões, desde os
primeiros registros escritos. A população do Haiti, com a totalidade composta
abaixo da linha de pobreza, devastada pela crônica corrupção das instituições e
várias catástrofes climáticas, sentindo-se desamparada para conter o surto do
cólera, que já atingiu mais de 80.000 pessoas com 2.000 mortos, linchou quatorze
pessoas acusadas de “praticar bruxaria e trazer a epidemia para a região” com
golpes de facão, pedradas e os corpos esquartejados e queimados nas ruas.
Ao
longo dos processos sociais, nos tempos marcados pelo medo pessoal e coletivo
da possibilidade de morte antecipada, especialmente, nas epidemias fora de
controle, as buscas dos culpados imaginados permeiam toda a brutalidade que as
pessoas podem perpetrar.