Zemaria Pinto
O contador de histórias – É o mais interessante dos doze trabalhos de Tigre no Espelho. Observe, leitor, que,
de maneira despojada, simples, Aragão usa da metalinguagem para desentranhar
uma história que, narrada em terceira pessoa, é a história do próprio narrador,
dando-nos uma verdadeira aula sobre a criação literária.
Note que o personagem defronta-se com três situações
adversas: o confronto com o chefe de escritório, que o adverte por estar
conversando; o conflito com o chefe de redação, que o critica por confundir
jornalismo com literatura; finalmente, o encontro com o policial, que julga que
ele esteja a fazer discursos em praça pública. Nos três casos, articulam-se
idéias sobre o fazer literário:
1 – A literatura escrita difere da literatura oral,
baseada na tradição, por trazer em seu bojo todo um aparato técnico do qual se
serve o escritor. Tigre no Espelho,
por tudo o que já dissemos antes, é um exemplo bem acabado desse fato;
2 – Jornalismo (realidade) e ficção (fábula) são
excludentes. A ficção será sempre a realidade transformada, recriada, do
contrário será mera reportagem;
3 – A literatura não serve para vender ideias,
objetivo imediato do discurso: o convencimento, a persuasão. A literatura de
ficção deve, acima de tudo, provocar prazer no leitor. As ideias, se as houver,
e Tigre no Espelho é um exemplo de
obra ficcional recheada de idéias sobre o fazer artístico, devem estar
subjacentes ao texto, de forma a não incomodar o leitor que opte apenas pelo
prazer de navegar à superfície do texto.
Por que não matei Olga? – A mulher de calcinha do conto “A velha Remington”
retorna em grande estilo, mantendo um diálogo com o escritor de contos
eróticos, o Avelar, de “As tias”. Olga, a personagem, quer independência do
velho careca, que com ela faz par no conto citado. Nada a acrescentar, além do
que já dissemos antes sobre o caráter metalinguístico da narrativa e do estilo
fantástico, que permite o inusitado diálogo entre criador e criatura.
Antes que se apague – Um diálogo com um interlocutor desconhecido, cujas manifestações não
nos chegam, este conto radicaliza o que chamamos, muitos parágrafos atrás, de
problematização do ato criador.
Se a um escritor a cegueira total não impede que ele
continue criando, não se pode inferir o mesmo de um escultor: a forma, na
literatura, é abstrata; na escultura, é concreta. O escritor não precisa “ver”
seu poema ou seu conto – ele pode ditá-lo, para alguém ou um simples gravador,
e trabalhá-lo até a forma final. Basta-lhe a audição. Um escultor, pelo
contrário trabalha com as mãos e o resultado do seu trabalho pressupõe a visão,
sob os mais diversos ângulos. O drama do escultor cego remete-nos ao do músico
surdo: Beethoven (1770-1827), nos últimos anos de sua vida, totalmente surdo,
não apenas escrevia suas composições como as regia em público. Tal como o
poeta, o músico tem o recurso da escrita (a partir da visão) para anotar suas
criações. Ao escultor, entretanto, resta apenas o tato para amenizar a mutilação
de sua capacidade criadora.
As tias –
Deslocado dos demais quanto ao tema, este conto traz um amargo sabor
nelsonrodrigueano, no relacionamento doentio e hipócrita entre as tias
solteironas e o sobrinho exibicionista. Avelar, o personagem-escritor de “A
velha Remington”, criador de Olga, a mulher de calcinha, vive com as tias Ana e
Branca, solteironas e assexuadas. Avelar provoca-as andando nu pela casa,
talvez um costume de infância. As tias, entretanto, não entendem assim e
sublimam sua sexualidade atribuindo as “esquisitices” do sobrinho à sua
condição de “poeta”.
O espelho e o tigre
Em algum lugar deste texto, dissemos que Tigre no Espelho é um livro de reflexão
sobre o ato criador. Agora, pensemos um pouco adiante: a arte só tem sentido
se, ao proporcionar prazer, conduzir à reflexão, ao questionamento, à dúvida. O
ser humano que só tem certezas é um infeliz, pois não percebe a diversidade de
vida que habita o seu caos cotidiano e não terá sensibilidade para perceber a
obra de arte.
O espelho é um símbolo da realidade que nos aprisiona.
Quanto ao tigre, leitor... Bem, coloque-se diante de um espelho e tente
decifrar o enigma.