Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Tigre no Espelho – Análise da obra 6/6


Zemaria Pinto

 
O contador de histórias – É o mais interessante dos doze trabalhos de Tigre no Espelho. Observe, leitor, que, de maneira despojada, simples, Aragão usa da metalinguagem para desentranhar uma história que, narrada em terceira pessoa, é a história do próprio narrador, dando-nos uma verdadeira aula sobre a criação literária. 

Note que o personagem defronta-se com três situações adversas: o confronto com o chefe de escritório, que o adverte por estar conversando; o conflito com o chefe de redação, que o critica por confundir jornalismo com literatura; finalmente, o encontro com o policial, que julga que ele esteja a fazer discursos em praça pública. Nos três casos, articulam-se idéias sobre o fazer literário: 

1 – A literatura escrita difere da literatura oral, baseada na tradição, por trazer em seu bojo todo um aparato técnico do qual se serve o escritor. Tigre no Espelho, por tudo o que já dissemos antes, é um exemplo bem acabado desse fato; 

2 – Jornalismo (realidade) e ficção (fábula) são excludentes. A ficção será sempre a realidade transformada, recriada, do contrário será mera reportagem; 

3 – A literatura não serve para vender ideias, objetivo imediato do discurso: o convencimento, a persuasão. A literatura de ficção deve, acima de tudo, provocar prazer no leitor. As ideias, se as houver, e Tigre no Espelho é um exemplo de obra ficcional recheada de idéias sobre o fazer artístico, devem estar subjacentes ao texto, de forma a não incomodar o leitor que opte apenas pelo prazer de navegar à superfície do texto.  

Por que não matei Olga? – A mulher de calcinha do conto “A velha Remington” retorna em grande estilo, mantendo um diálogo com o escritor de contos eróticos, o Avelar, de “As tias”. Olga, a personagem, quer independência do velho careca, que com ela faz par no conto citado. Nada a acrescentar, além do que já dissemos antes sobre o caráter metalinguístico da narrativa e do estilo fantástico, que permite o inusitado diálogo entre criador e criatura. 

Antes que se apague – Um diálogo com um interlocutor desconhecido, cujas manifestações não nos chegam, este conto radicaliza o que chamamos, muitos parágrafos atrás, de problematização do ato criador.  

Se a um escritor a cegueira total não impede que ele continue criando, não se pode inferir o mesmo de um escultor: a forma, na literatura, é abstrata; na escultura, é concreta. O escritor não precisa “ver” seu poema ou seu conto – ele pode ditá-lo, para alguém ou um simples gravador, e trabalhá-lo até a forma final. Basta-lhe a audição. Um escultor, pelo contrário trabalha com as mãos e o resultado do seu trabalho pressupõe a visão, sob os mais diversos ângulos. O drama do escultor cego remete-nos ao do músico surdo: Beethoven (1770-1827), nos últimos anos de sua vida, totalmente surdo, não apenas escrevia suas composições como as regia em público. Tal como o poeta, o músico tem o recurso da escrita (a partir da visão) para anotar suas criações. Ao escultor, entretanto, resta apenas o tato para amenizar a mutilação de sua capacidade criadora.  

As tias – Deslocado dos demais quanto ao tema, este conto traz um amargo sabor nelsonrodrigueano, no relacionamento doentio e hipócrita entre as tias solteironas e o sobrinho exibicionista. Avelar, o personagem-escritor de “A velha Remington”, criador de Olga, a mulher de calcinha, vive com as tias Ana e Branca, solteironas e assexuadas. Avelar provoca-as andando nu pela casa, talvez um costume de infância. As tias, entretanto, não entendem assim e sublimam sua sexualidade atribuindo as “esquisitices” do sobrinho à sua condição de “poeta”.
 

O espelho e o tigre 


Em algum lugar deste texto, dissemos que Tigre no Espelho é um livro de reflexão sobre o ato criador. Agora, pensemos um pouco adiante: a arte só tem sentido se, ao proporcionar prazer, conduzir à reflexão, ao questionamento, à dúvida. O ser humano que só tem certezas é um infeliz, pois não percebe a diversidade de vida que habita o seu caos cotidiano e não terá sensibilidade para perceber a obra de arte. 

O espelho é um símbolo da realidade que nos aprisiona. Quanto ao tigre, leitor... Bem, coloque-se diante de um espelho e tente decifrar o enigma.