Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Tigre no Espelho – Análise da obra 4/6


Zemaria Pinto


A Condessa – Narrado em primeira pessoa, este conto tem a literatura apenas como pano de fundo: há uma profusão de citações, inclusive cinematográficas, mas como já chamamos sua atenção alguns parágrafos atrás, este conto foi escrito por um personagem: o narrador de “Aranha tece a teia”, que é o mesmo de “Meu contrato milionário”. É a ficção dentro da ficção.

O enredo, embora não seja muito original, tem humor: um sujeito pobre conhece uma mulher madura, que se identifica como Condessa. Eles passam a ter um caso, encontrando-se no luxuoso apartamento dela. Um belo dia a verdade vem à tona: ela era apenas a empregada da verdadeira Condessa, que estivera viajando.

Aranha tece a teia – Outro escritor de contos eróticos medita enquanto espera pela namorada, Lily, que funciona também como uma anacrônica “musa inspiradora” na sua busca pela motivação de escrever. Como já observamos, e o leitor notará no bojo do texto, ele é o autor de “A Condessa”. Narrado falsamente em terceira pessoa, só na última frase do conto percebemos, com a mudança de terceira para primeira pessoa, que o narrador é o próprio escritor-personagem: 

Ela sorri. Os olhos verdes brilham. Agora sim, eram os olhos verdes da Lily que ele conhecia.

Anoitecia quando Lily deixou o quarto de pensão. Ele comeu o último pedaço de pizza, cuspiu o caroço de azeitona, bebeu o resto de vinho na garrafa. Não existe ninguém como a Lily. Ela chega, espanta os fantasmas que rondam o solitário escritor. E quando vai embora deixa sempre farto material para o novo romance, que não sei se consigo escrever.  

Observe também a inserção gráfica, em forma de parêntesis, na qual se faz a apresentação de Lily, representando o pensamento do personagem.  

A barata – este conto é gêmeo de “Tigre no Espelho”, a narrativa que abre o livro. Mostra-nos o theco Franz Kafka (1883-1924), que é, como Borges, um dos escritores essenciais deste século, autor de clássicos do gênero fantástico, como a novela A Metamorfose, ponto de partida da narrativa de Aragão. Para que o leitor entenda melhor o personagem deste conto, vamos resumir a trama de A Metamorfose. O texto começa de forma lapidar: 

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. 

Observe, leitor, que não se trata de delírio. Samsa realmente transforma-se em um inseto. De esteio da casa, ele converte-se em estorvo para a família, antes tão dependente. Até a irmã, que no início da metamorfose procurava demonstrar-lhe carinho, vai aos poucos afastando-se dele. A incomunicabilidade é total. Gregor Samsa definha até a morte. 

O Kafka de Adrino Aragão é prisioneiro de uma obsessão: o personagem Gregor Samsa. Há algumas liberdades por parte do autor. Por exemplo: Kafka só conheceu Milena, por quem se apaixonou, oito anos após ter escrito A Metamorfose. Mas estamos tratando de ficção, não de uma biografia de Kafka. Um problema grave, entretanto, no nosso entendimento, começa com o título da narrativa, “A barata”: Kafka em nenhum momento diz que em que espécie de inseto Samsa transformou-se. É um inseto, apenas. Traduzi-lo como barata é empobrecedor e arbitrário.   

A entrada em cena do poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), parece-nos também problemática, a menos que aceitemos a cândida explicação do personagem: 

– A senhora disse que ouviu vozes? Talvez não acredite, mas falava comigo mesmo. E em voz alta. Ou melhor, conversava com meus anjos e demônios. Mais demônios que anjos...   

Ao fazer Poe parafrasear Guimarães Rosa (“o verdadeiro escritor não morre, fica encantado”) e prever o sucesso futuro de Kafka, Aragão toma tal liberdade com as relações tempo/espaço que a única “explicação” plausível é a condição onisciente do autor de O Corvo, cujos versos citados no original apresentamos na tradução de Fernando Pessoa: 

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.   

Mas a intenção do autor é interessante. Poe e Kafka tiveram uma vida um tanto conturbada, sem reconhecimento público, e morreram jovens, na casa dos 40 anos de idade. Kafka, turberculoso, e Poe, de cirrose. No diálogo entre os dois, Aragão registra, como em outros contos deste livro, o dilaceramento provocado pelo ato criador: 

– Escrever é um sofrimento. Mas também é, para mim, a forma de eu me defender diante do mundo conturbado, caótico, aterrorizador. Ou escrevo ou enlouqueço.