Zemaria Pinto
A Condessa – Narrado em primeira pessoa, este
conto tem a literatura apenas como pano de fundo: há uma profusão de citações,
inclusive cinematográficas, mas como já chamamos sua atenção alguns parágrafos
atrás, este conto foi escrito por um personagem: o narrador de “Aranha tece a
teia”, que é o mesmo de “Meu contrato milionário”. É a ficção dentro da ficção.
O enredo, embora não seja
muito original, tem humor: um sujeito pobre conhece uma mulher madura, que se
identifica como Condessa. Eles passam a ter um caso, encontrando-se no luxuoso
apartamento dela. Um belo dia a verdade vem à tona: ela era apenas a empregada
da verdadeira Condessa, que estivera viajando.
Aranha tece a teia – Outro escritor de contos eróticos
medita enquanto espera pela namorada, Lily, que funciona também como uma
anacrônica “musa inspiradora” na sua busca pela motivação de escrever. Como já
observamos, e o leitor notará no bojo do texto, ele é o autor de “A Condessa”.
Narrado falsamente em terceira pessoa, só na última frase do conto percebemos,
com a mudança de terceira para primeira pessoa, que o narrador é o próprio
escritor-personagem:
Ela sorri. Os olhos verdes brilham. Agora sim, eram os olhos
verdes da Lily que ele conhecia.
Anoitecia quando Lily deixou o quarto de pensão. Ele comeu o
último pedaço de pizza, cuspiu o caroço de azeitona, bebeu o resto de vinho na
garrafa. Não existe ninguém como a Lily. Ela chega, espanta os fantasmas que
rondam o solitário escritor. E quando vai embora deixa sempre farto material
para o novo romance, que não sei se consigo escrever.
Observe também a inserção
gráfica, em forma de parêntesis, na qual se faz a apresentação de Lily, representando
o pensamento do personagem.
A barata – este conto é gêmeo de “Tigre no
Espelho”, a narrativa que abre o livro. Mostra-nos o theco Franz Kafka
(1883-1924), que é, como Borges, um dos escritores essenciais deste século,
autor de clássicos do gênero fantástico, como a novela A Metamorfose, ponto de partida da narrativa de Aragão. Para que o
leitor entenda melhor o personagem deste conto, vamos resumir a trama de A Metamorfose. O texto começa de forma
lapidar:
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos
intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
Observe, leitor, que não
se trata de delírio. Samsa realmente transforma-se em um inseto. De esteio da
casa, ele converte-se em estorvo para a família, antes tão dependente. Até a
irmã, que no início da metamorfose procurava demonstrar-lhe carinho, vai aos
poucos afastando-se dele. A incomunicabilidade é total. Gregor Samsa definha
até a morte.
O Kafka de Adrino Aragão é
prisioneiro de uma obsessão: o personagem Gregor Samsa. Há algumas liberdades
por parte do autor. Por exemplo: Kafka só conheceu Milena, por quem se
apaixonou, oito anos após ter escrito A
Metamorfose. Mas estamos tratando de ficção, não de uma biografia de Kafka.
Um problema grave, entretanto, no nosso entendimento, começa com o título da
narrativa, “A barata”: Kafka em nenhum momento diz que em que espécie de inseto
Samsa transformou-se. É um inseto, apenas. Traduzi-lo como barata é
empobrecedor e arbitrário.
A entrada em cena do
poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), parece-nos também
problemática, a menos que aceitemos a cândida explicação do personagem:
– A senhora disse que ouviu vozes? Talvez não
acredite, mas falava comigo mesmo. E em voz alta. Ou melhor, conversava com
meus anjos e demônios. Mais demônios que anjos...
Ao fazer Poe parafrasear
Guimarães Rosa (“o verdadeiro escritor não morre, fica encantado”) e prever o
sucesso futuro de Kafka, Aragão toma tal liberdade com as relações tempo/espaço
que a única “explicação” plausível é a condição onisciente do autor de O Corvo, cujos versos citados no
original apresentamos na tradução de Fernando Pessoa:
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Mas a intenção do autor é
interessante. Poe e Kafka tiveram uma vida um tanto conturbada, sem
reconhecimento público, e morreram jovens, na casa dos 40 anos de idade. Kafka,
turberculoso, e Poe, de cirrose. No diálogo entre os dois, Aragão registra,
como em outros contos deste livro, o dilaceramento provocado pelo ato criador:
– Escrever é um sofrimento. Mas também é, para mim, a
forma de eu me defender diante do mundo conturbado, caótico, aterrorizador. Ou
escrevo ou enlouqueço.