Amigos do Fingidor

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Medicina na mitologia grega

 
 

João Bosco Botelho

 

As relações da Medicina com a compreensão mítica da realidade se perderam no tempo. É impossível separar as ideias míticas do entendimento do homem sobre a saúde e a doença. Esse fato se deve ao apoio oferecido pelo mito como forma de conhecimento nas sociedades que ainda não conseguem explicar as contradições da saúde e da doença de outra forma. Contudo, a mitologia nasce da relação com o mundo da natureza empírica, mas acima do meramente empírico.

Das primitivas relações do homem com o animal, posteriormente substituídas pelas relações com a terra, surgiu empiricamente o uso das plantas na busca da saúde. A utilização do vegetal, indispensável para a sobrevivência do homem, se processou em complexa compreensão mítica, que foi marcada pelas explicações que se sucederam nos milênios sobre a origem primeira e o destino final do ser humano. Elas evoluíram da Epopeia de Gilgamesh, dos babilônios, à Teoria do Big Bang, dos modernos astrofísicos, passando pela gênese judaico-cristã e pela Yebá beló da lenda desana da criação do Sol.

Apesar da melhor compreensão que temos hoje da transformação do pensamento mítico, a dificuldade da interpretação aumenta na proporção que recuamos no tempo. Entretanto, parece ser a partir do século VI a.C. e da Grécia que chegou a nós material historiográfico suficiente para traçar, com alguma segurança, um perfil da Medicina na mitologia.

Os registros históricos que se ocupam da Medicina na mitologia grega são, provavelmente, o produto das complexas relações do homem que antecedeu a formação do pensamento grego. É possível estabelecer certo paralelismo entre muitos aspectos das relações médico-míticas das civilizações babilônica, egípcia e indiana com as da Grécia antiga.

De acordo com a mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filho da união de Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo era considerado como o deus protetor dos guerreiros. Posteriormente, foi identificado como Aplous, aquele que fala a verdade. Ele agia purificando a alma através das lavagens e aspersões e do corpo com remédios curativos. Era considerado o deus que lavava e libertava do mal.

Um dos seus filhos, Asclépio, recebeu educação do centauro Quíron para ser médico. A escolha do centauro foi feita porque ele dominava o completo conhecimento da música, magia, adivinhações, astronomia e da Medicina. Além dessas habilidades, Quíron possuía incomparável destreza. Manejava com a mesma habilidade o bisturi e a lira.

Para os gregos daquela época, Asclépio divinizou a Medicina na mitologia. Ele era celebrado em grandes festas públicas no dia 18 de outubro, data em que até hoje se comemora o dia do médico no Ocidente. Asclépio conquistou uma fama inimaginável, tinha a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros lugares, procuravam as curas milagrosas desse deus taumaturgo. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e por ordem de Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse transtornada, foi morto com os raios das Ciclopes.

Asclépio deixou duas filhas, Hígia e Panaceia, a primeira foi celebrada como a deusa da Medicina e a segunda curava todos os doentes com os segredos das plantas medicinais. Além delas, teve dois filhos, Machaon e Podalírio, médicos guerreiros que se destacaram na guerra de Tróia. Panaceia continuou a linhagem de médicos que começou com Apolo, fazendo do seu filho Hipocoonte um médico famoso e ancestral de Hipócrates.

Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de agradecimentos dos doentes para Asclépio. No hospital de Epidauro, na Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do doente a descrição da doença e da cura obtida. Quase todas as representações simbólicas de Asclépio, produzidas, entre os séculos VI e VII a.C., contêm uma serpente enrolada num bastão.

O simbolismo da serpente com a Medicina já estava presente na civilização babilônica, dez séculos antes da formação da polis grega. Existe no Museu do Louvre, em Paris, um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash, representando o deus da cura babilônico – Ningishida –, duas serpentes entrelaçadas.

O simbolismo da serpente é frequentemente ligado à transcendência da morte. Existem várias explicações para a relação da Medicina com a serpente. As mais conhecidas são: a serpente pode viver em cima e embaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos e a capacidade da serpente de mudar a sua pele de tempos em tempos, encenando o renascimento. Esta última interpretação está relatada no Rig Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os descendentes das serpentes e ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade.

Seja qual tenha sido a razão que levou o homem, no passado, a estabelecer um elo da serpente com a Medicina, provavelmente estava relacionada com a luta pela sobrevivência.