Letícia Cardoso
Desde que se deu conta de
que seu marido não a amava, Maria Carolina tentava encontrar uma forma de se
punir. Pois acreditava que a falta de amor dele por ela era sua culpa.
Foi na tarde em que
comemoravam a colação de grau de Zeca oferecendo buchada de bode com farinha
aos amigos, no momento do discurso, que ele perdeu sua mulher. Quando agradeceu
imensamente à mãe por nunca ter permitido que lhe faltasse o mínimo para
estudar, Maria se sentiu como um objeto plástico bem vulnerável, desses que
furam com facilidade. Ela me disse uma vez que concordava totalmente com o
agradecimento de seu marido, mas que também se sentiu desvalorizada. Não por
ele tê-la esquecido, porém pelo simples fato de não ter se lembrado dela.
E desse dia em diante não
importava o quanto Zeca tentasse, Maria Carolina não o perdoava. Não por birra,
mas porque não conseguia. Não sentia mais vontade de abraçá-lo, não sentia mais
vontade de ouvi-lo, justo isso que era uma das coisas que Maria Carolina mais
adorava em seu marido: a sua voz. Mas o pior de tudo, e a gota final para Zeca,
foi que Maria Carolina não conseguia olhá-lo nos olhos. Sua mulher, aquela
mulher que sempre estava com os olhos em cima dele, brilhando, atentos, agora os
mantinha baixos.
Maria Carolina passou a
andar curvada, os ombros mais do que inclinados, o olhar no chão. Sorrir, ela
sorria. Mas só quando Zélia Paçoca, uma moça maluca, ia visitá-la.
No dia 4 de setembro,
enquanto lavava a roupa no tanque, Maria Carolina recebeu a visita de uma
mulher misteriosa. Na verdade, não era tão misteriosa assim sua identidade.
Acontece que a jovem senhora tinha uma grande berruga no nariz e o chapéu que
usava cobria boa parte dos olhos. Essa mulher fora professora de Zeca por quatro
períodos. Inicialmente, ele a temia e falava mal dela durante horas,
principalmente no horário do almoço. Uma vez, Zeca se engasgou ao contar a
Maria a resposta que sua professora lhe dera numa ocasião em que ousou
fazer-lhe uma pergunta. Desde esse dia, Zeca nunca mais acrescentou farinha no
pirão.
Maria Carolina tratou
de oferecer café e bolachas de água e sal para professora. Esta, porém, aceitou
apenas o café para acompanhar o cigarro que acabara de acender na pequena sala
da asmática Maria, que, tímida, aceitou.
A visita da ilustre
mestra causou em Maria Carolina ainda mais insatisfação. A velha senhora queria
convidar Zeca para trabalhar com ela em um programa federal de educação. Para
isso, entretanto, seu marido teria que acompanhá-la em expedições no interior
do estado. A professora não esperava ouvir a opinião de Maria sobre isso, e nem
a teve. Parece que seu gosto único foi ir ali e por puro prazer pisar na pobre
Maria Carolina, que há muito tempo largara o exercício da docência, adquirido
pelo ralo magistério que sua finada mãe incumbira-lhe de fazer. Contudo, ao
casar-se com Zeca, deixou a malfadada profissão de lado.
Do mesmo modo que
entrou, a jovem mulher velha saiu e Maria Carolina ali enfim chorou. Foi o
choro mais sofrido, porém contido, dos últimos anos. Foi o momento em que se
desapegou totalmente da vida que estava vivendo.
Quando Zeca chegou em casa,
Maria Carolina estava sentada sobre a mala olhando para algum ponto fixo na
parede. Sem rodeios ele perguntou se era só aquilo então os cinco anos que
compartilharam juntos. Se eles se resumiram naquela droga de bagagem. O olhar
que Maria Carolina enfim dera a Zeca foi algo que ele nunca, jamais, em toda
sua vida pudera esquecer. Um olhar de animal ferido, abandonado pelo dono.
Magoado.
Ela respondera-lhe que
as chaves dela estavam na mesinha do centro da sala, que dali a dois dias o
irmão, Carlos, levaria o resto que lhe pertencia e que não precisava se
preocupar com ela, pois a casa ela não queria.
Zeca tentou recuperar
Maria. Pediu perdão seja lá pelo que fosse que tinha feito. Gritou com ela
quando percebeu que não adiantava falar ou prometer qualquer coisa. O desespero
tomou conta dele ao perceber que a mulher estava determinada e que nada a faria
mudar de decisão.
Os olhos de Maria não o
olhavam mais. As mãos não lhe acariciavam e apertavam mais. Os lábios já não
lhe queriam beijar. Soluçou. Zeca chorou como uma criança na primeira noite que
passou sozinho. Nas próximas, a mãe e a irmã vieram lhe fazer companhia e dali
nunca mais saíram.
Maria Carolina
conseguiu voltar aos estudos. Virou babá dos filhos de seu irmão, Carlos, e à
noite fazia um cursinho para doceiros. Maria era uma boa cozinheira. Aprendera
algo útil no casamento com Zeca, afinal.
E foi assim que eu a
conheci e sua história me foi contada sem que eu desejasse saber. Ela precisava
de alguém para ouvi-la e eu fui a pessoa escolhida. Ou talvez desconhecida o
bastante para ela me confidenciar algo assim tão íntimo.
Agora depois de tanto
tempo é que pude perceber o que a amargura nutrida por semanas e a falta de
iniciativa imediata dele fizeram com ela. No lado esquerdo de seu peito, havia
algo cravado. O amor por Zeca transformou-se em mágoa. Ela jamais conseguira
tirar aquele punhal dali. Nem queria. Pois era sua forma de amá-lo.
Muitas pessoas
estranhavam o volume perto do seio esquerdo de Maria que ia crescendo dia após
dia. De vez em quando, podia se ouvir o esganiçado arfar que dava ao fazer mais
esforço que o normal. Por exemplo, na vez em que precisou pegar a lata de
fermento que estava no ponto mais alto do armário, a pobre pequena Maria
Carolina esticou-se o máximo que pôde e só não caiu porque tinha feito balé
ainda criança e conservava a elasticidade e o corpo magrelo. Mas o punhal, que
já passava três centímetros desde a última vez que eu a vira, cravou um pouco
mais em seu peito.
Nessa tarde calorenta,
Maria Carolina recebera a notícia de que Zeca tinha aceitado a oferta da
professora verruguenta e viajaria dali a dois dias. Maria Carolina limpou com o
sujo avental as poucas lágrimas secas que saiam dos seus olhos opacos, deu seu
sorriso fraco e costumeiro de sempre e se despediu dizendo que era a hora de
fazer o bolo da tarde.
Uma semana mais tarde
chegara a notícia de que Zeca tinha pedido a mão da professora em casamento e o
punhal de Maria Carolina já estava próximo dos dez centímetros. Mas graças à
recente boa nova, cinco centímetros voltaram-se para dentro, cravando ainda
mais o peito dela.
Eu não pude fazer nada,
porque nesse dia eu fiquei na redação do jornal até tarde da noite, mas quando
soube da morte de Maria Carolina meu coração se comoveu e comprimiu-se o
bastante para que eu pudesse sentir dor, mas, sobretudo pena daquela jovem que
só queria ter sido reconhecida em algum momento de sua vida.
Não fora bastante forte
para fazer isso por si mesma, e dependendo ora das orientações da mãe ora das
migalhas de amor do soberbo Zeca, Maria Carolina cravara de vez o punhal do seu
coração ao perceber que suas mãos estavam enrugadas. Nunca foi fácil para ela
lidar com a questão do tempo. Maria Carolina sempre se antecipou numa tentativa
de alcançá-lo, quando, na verdade bastava que esperasse ele vir ao seu
encontro.