Tainá Vieira
Todo mundo já falou com ele. Se não
falou, um dia ainda vai falar. Ele, várias vezes, já se aproximou de mim, e até
senti um arrepio gelado como se ele fosse chegar por trás e pegar meu ombro. Em
um segundo pensei é ele, mas quando virei não era. Fiquei frustrada. Pois o
sentia, mas não o via. Já o senti perto de mim em muitas situações.
Quando criança eu sempre o via, tenho certeza
de que era ele. Aparecia para mim todo final de tarde, e me encontrava no mesmo
lugar. Nessa época, eu morava num interior distante do que eu moro hoje
nas férias. A casa tinha os fundos para uma mata, uma mata sem fim e sem
rumo. E a frente para um lago onde meus olhos sumiam na sua imensidão. Para
chegar à margem do lago tínhamos que passar por muitas árvores, eram
mangueiras. A casa ficava num lugar alto, posto que as árvores também
ficavam no alto e eu tinha uma visão panorâmica esplêndida da paisagem.
Por isso que toda tarde me encontrava naquele lugar. A primeira vez que
ele apareceu eu fiquei feliz, pois o lugar é deserto, não tinha muitos vizinhos
ou crianças pra brincar comigo, então achei maravilhoso conhecer um menino ali.
Sim, ele era um menino e lindo, não estava de preto e nem com chifre e nem
fedia a enxofre. Ele parecia mais um príncipe, e vocês me perguntam
como é que eu sei que era ele? Eu sei porque ele me disse. Meu nome é
Lúcifer. Eu, assustada disse: o diabo! E ele respondeu, prefiro
Lúcifer. Ele disse-me que queria ser só meu amigo, apesar de
aparentar um menino, ele era mais velho do que eu, não fazia ideia da sua
idade, mas digo isso porque ele falava bonito, dizia-me coisas que eu não
entendia, e que só passei a entender bem mais tarde, na escola ou na
faculdade. Hoje sei que ele me falava de filosofia, vida, morte e até do inferno,
foi ele a primeira "pessoa" a me falar de Dante Alighieri.
Falava em "Comédia" e em "Divina". E quando ele falava
essas palavras, esses nomes, ele ria, gargalhava demais. E pronunciava outra
palavra, "Ilusão". Lembro-me vagamente desses momentos, mas
lembro. Foram diversos encontros, ele nunca faltava, até que chegou o dia
em que precisei partir dali. Eu disse a ele que iria embora e dei até o
novo endereço, mas ele jamais foi lá.
Da época de criança até ele aparecer
de novo, levou muito tempo, mais de 15 anos. Eu pensava que ele nunca mais
voltasse, como eu disse, eu o sentia por perto de mim, mas não o via, e eu
queria vê-lo, falar novamente com ele, queria que ele visse como eu tinha crescido,
que agora era uma mulher feita e que também podia compreender qualquer coisa
que ele me dissesse. Queria dizer a ele que lera a Divina Comédia, e queria
que ele mesmo me falasse sobre o Inferno, se é realmente como Dante descreve.
Gostaria de falar pra ele que “conheci” Sócrates, ele tinha me falado desse
também. Há muita coisa a dizer a ele. Pensei várias vezes nisso.
Até que um dia, ou melhor, uma noite,
quando eu agonizava de dor num leito de hospital, ele apareceu. Nessa noite, eu
sofri muito, nunca sentira tamanha dor, minhas entranhas sangravam
desesperadamente, minha alma vagava por pensamentos longínquos.... Não tinha a
quem recorrer, eu clamei a Deus, para aliviar a dor, o sangue, mas Ele não
apareceu, encontrava-me só ali quando vi que minhas forças estavam se esvaindo
depressa e meus olhos se fechariam pra sempre, passou um filme na minha cabeça,
e eu lembrei de toda minha vida, e de repente o filme parou na cena em que ele
menino aparecia para mim. Foi aí, que
pensei nele, desejei vê-lo e pedi que ele aparecesse para mim. Já era
madrugada, as enfermeiras dormiam, era silêncio total, embora eu ainda sentisse
dor, eu não mais gritava, não adiantava, eu sentia aquela dor em silêncio, eu
podia até ouvir o silêncio da dor. Foi a pior noite da minha vida, e também a
melhor. Por isso jamais irei esquecê-la. Como uma brisa gélida da madrugada, eu
o senti tocando minha face, não tive medo e nem abri os olhos logo, prolonguei
aquele momento para que esse momento se eternizasse. Até que ouvi a sua voz
novamente, ele não era mais um menino e sim um homem maduro e continuava
bonito. Ele sentou-se ao meu lado e dessa vez, ele não falou muito, apenas me
ouviu. Ouviu em soluços as atrocidades que aconteceram comigo, eu até forcei
muitas lágrimas para que ele sentisse pena de mim e me levasse com ele,
entretanto, ele nada dizia, só me olhava em silêncio. E em meio às lágrimas eu
forçava um sorriso e ele continuava indiferente, a única coisa boa que ele fez,
foi tirar a dor que sentia. Foram horas que ele esteve ali, uma luz acendeu,
ele me olhou, tocou novamente minha face e disse que voltaria outro dia e
desapareceu.
Não sei o que ele pensou de mim, só sei
que ele me salvou. Parece loucura esperar por ele, mas as lembranças da
infância continuam vivas em mim, e essas lembranças me dão a certeza de que
posso e devo esperar por ele. Não sei realmente se ele voltará para mim, depois
daquela noite, eu venho tentando encontrá-lo, mas nada, ele não aparece. Quem
sabe, brevemente não nos encontraremos em outro leito de hospital, sentirei
aquela dor novamente, mas ela sairá de mim com uma leve carícia das mãos dele.