Amigos do Fingidor

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Existiriam curadores e adivinhos transcendentes?



João Bosco Botelho

            

    A manutenção do poder dos curadores e adivinhos ao longo da história não tem sido uniforme, muito menos permanente. Alguns aspectos da construção do cristianismo nos primeiros tempos poderiam ser inseridos nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram buscar na nova mensagem cristã as forças da libertação, sob a guarda de um Deus essencialmente generoso e bondoso, que não pregava a vingança em nenhuma circunstância. Não é sem razão, que a chegada do cristianismo continua sendo saudada como a Nova Aliança.

    O processo de substituição dos curadores e adivinhos nunca ocorre em linha reta. De modo diverso, serpenteia os conflitos sociais e políticos mais agudos. E pode ser entendido em dois momentos distintos e próximos que sedimentam as mudanças na direção da mudança almejada: a desmoralização do antigo e a substituição pelo novo. Todavia, é somente no segundo instante que a mudança do velho pelo novo se consolida, quando pode aparecer o herói mítico de salvação, para satisfazer as aspirações coletivas e minorar o sofrimento.

    A análise histórica está repleta dos registros confirmando a existência, desde tempos imemoriais, dos curadores e adivinhos que fluíram no sabor das mudanças sociais e políticas. Os registros descritivos transcrevem elogios quando a mudança apoia o poder dominante ou, simplesmente, despreza‑os quando representam a resistência.

    É possível entender outro papel social e político dos curadores e adivinhos, situado em contexto muito mais amplo: abordagem dessa história de longa duração sob o enfoque dinâmico da luta travada entre grupos na ocupação dos espaços sociopolíticos, para serem compreendidos como agentes de coesão social, sempre aliados aos deuses e deusas dominantes naquele momento.

    Seria possível que as pessoas reconhecidas como especializadas em curar e adivinhar, apresentadas pelas ideias e crenças religiosas, tenham qualidades especiais próprias – o dom capaz de curar e amenizar o sofrimento pessoal e coletivo – que os distinguiriam dos outros mortais?

    Não há dúvida que, desde milhares de anos, existe o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres com essas capacidades especiais, pressupostas transcendentes, para curar e adivinhar, intermediando a vontade da divindade. Infelizmente, continuamos sem compreender o significado biológico disso. Permanece sem resposta a indagação: será que o curso da vida de uma pessoa ou de populações pode ser modificado por esse dom, pelo milagre?

    Enquanto não há outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico (Tg 1,17): "Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das Luzes", largamente difundido depois da cristianização do Ocidente.

    A maior parte dessa comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binária do prêmio-castigo. A saúde, o prêmio pelo cumprimento das ordens; a doença, o castigo pela desobediência. Por esta razão, o aliado do poder dominador que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava a divindade. Ao contrário, quem não reproduzisse a mensagem dominado­ra, mesmo que sarasse e adivinhasse com maior competência, era identi­ficado com agente da antidivindade, do deus inimigo que deve ser destruído.

    Desse modo, se torna mais fácil entender porque existem, nos cinco continentes, milhares de identificações para deuses e deusas acumulados desde os primeiros registros escritos. Cada grupo social identifica o próprio deus como o mais poderoso e mais verdadeiro: capaz de curar as doenças e os infortúnios.