João Bosco Botelho
Existiram muitos heróis míticos na história
das crenças e das ideias religiosas. A mensagem cristã de libertação modificou
completamente a estrutura sociopolítica do mundo. Dois mil anos depois continua
tendo sedução irresistível, capaz de penetrar na profundidade do sentimento
humano.
De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio
ao mundo como o filho de Deus com poderes de curar e ressuscitar e anunciar a
nova mensagem escatológica: o cristianismo como a Nova Aliança.
Não é
adequado deixar de pensar na existência de outras condições sócio‑políticas
para sedimentar a incrível sedução que acompanhou a mensagem salvífica
anunciada pelo cristianismo primitivo.
A miséria atingira patamar insuportável para
o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. Naquela época, a população do
Império Romano fora calculada entre 65 a 70 milhões de pessoas e somente perto
de quatro milhões, segundo os dados demográficos levantados pelo imperador
Augusto, eram cidadãs romanas.
Os hebreus, no oriente helenístico, que já
adoravam um Deus único alguns milhares de anos antes, alcançaram a proporção de
um para cada dez habitantes e faziam parte desse bizarro mosaico de
mentalidades. Esses grupos judeus reproduziam, ao longo de mais de mil anos, as
próprias experiências sagradas por meio de três elementos de coesão social: a
fé monoteísta, a sinagoga e o sábado. Esse conjunto oriundo da memória oral
estava transcrito nos livros sagrados (Tora e Talmud) e era utilizado também como
instrumento de organização social.
A tradição semita vivia a religião de fé monoteísta
plena de esperança no futuro, capaz de modificar o intolerável jugo
estrangeiro contestador dos elementos sagrados do judaísmo. A promessa de Deus
aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro que desfrutaria da terra
prometida farta de leite e mel. Assim o judaísmo rompeu com o tempo cíclico e
estabeleceu a crença num tempo final.
É evidente que as ideias religiosas se
manifestam de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos onde
começa uma expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo
primitivo, nascido no seio das massas populares judias perseguidas pela
implacável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo,
que continuava esperando o seu herói mítico de salvação (Jo 1, 49) – "Então
Natanael exclamou: Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel!"
Ainda nesse ponto da história, o
cristianismo era manifestação religiosa de povos oprimidos, desesperados para
minorar os sofrimentos, pleno de sincretismo, onde os curadores e adivinhos de
todos os matizes tinham espaço.
Os primeiros padres da cristandade deslocaram
grande parte da antiga escatologia judaica e passaram com nitidez de uma
concepção coletiva para valorizar mais o individual, onde a confissão a Jesus
era a única salvação.
Com a passagem de religião dos desprotegidos
para a do poder dominador iniciou a perseguição aos curadores e adivinhos não
alinhados com a nova ordem (At 16, 16‑18).
Mesmo existindo ouros vetores, na Europa
central, o processo de cristianização abandonou completamente os cuidados
coletivos com a saúde, alimentação e higiene das práticas sociais do judaísmo. O
tipo da arquitetura, do arco romano ao arco gótico, e o agravamento das
epidemias que castigaram a Europa durante o medievo estão inseridos nesse
equivocado processo de substituição.