João
Bosco Botelho
Durante
o pós-doutorado, em algum dia do inverno de 1992, entre janeiro e fevereiro, conheci
na salle de garde, da Universidade de
Paris VII, o médico albanês Halrian Plavcz. Pelo crachá de identificação atado
à bata branca se sabia os nomes e países de origem dos médicos e estudantes que
circulavam no hospital.
As
salles des gardes são as salas de
refeições somente dos médicos. A tradição de os médicos comerem em lugares
separados dos da administração hospitalar remonta à Revolução Francesa.
Durante
o almoço, o nosso diálogo começou em consequência de notícia, no jornal Le Monde, analisando a alta inflação
brasileira.
Não
me lembro como a conversa avançou na direção da ruína da ordem socialista-comunista,
no leste europeu. Nesse momento, o médico albanês, com certa emoção, disse que
estava, naquele momento e naquele lugar, porque o muro tinha sido derrubado. Em
seguida, explicou que a intolerância à liberdade, antes da queda do muro, seria
facilmente compreendida por meio da peça teatral “A grande roda”, do teatrólogo Vaclav Havel, na época, presidente da
Tchecoslováquia, que estava sendo encenada no Teatro de La Ville, um dos mais
de trezentos teatros parisienses em funcionamento.
A
peça é essencialmente voltada à forte crítica do modelo socialismo-comunismo
(ou comunismo-socialismo), que enclausurou a liberdade às ordens dos partidos
comunistas.
Aos
que estavam próximos, era visível o aumento da tensão emocional do Halrian, ao
dizer que nunca compreendeu como os membros dos partidos comunistas, uma porção
minoritária em relação à população, conseguiram se manter tanto tempo no poder.
Durante alguns instantes, fitando a fumaça do cigarro entre os dedos amarelados,
perguntou como as pessoas puderam ter se encantado com um partido político que,
essencialmente, baniu as mais elementares noções de liberdade.
Naquele
momento, relembrei para ele a viagem realizada ao leste europeu, no inverno de
1976, quando visitei vários países. É difícil esquecer o entardecer gelado do
domingo, em Sofia, na Bulgária, quando fotografei dois policiais na porta da
magnífica catedral, fiscalizando os papéis de autorização para as pessoas entrarem
e assistirem à missa.
O
médico albanês afastou o prato de comida e ajeitou os cabelos precocemente embranquecidos.
Acendendo outro cigarro, perguntou se eu era cristão. Sem esperar a resposta,
elevando o tom da voz, disse que o pai dele era pastor metodista e que, inconformado
com a miséria dos camponeses, acreditou nas propostas do socialismo-comunismo. Não
muito tempo depois, viu os amigos que contestavam a autoridade do partido
comunista serem julgados e condenados. Por ter discordado publicamente de um
desses “julgamentos”, foi preso e a família nunca mais teve notícia dele. Em
poucos dias, a igreja foi transformada em viveiro de galinhas e patos.
Nesse
instante, vi que o médico chorava sem ruído; as lágrimas escorriam pela face
muito branca. O refeitório estava em silêncio; todos ouviam e viam o pranto do
médico quando ele aumentou ainda mais o tom da voz para dizer que tivera mais
sorte. Seu irmão Glawcav morreu de frio e de fome antes de alcançar a fronteira
italiana. Halrian soluçava e alguns médicos perguntavam o que se passava.
Uma
médica búlgara, também refugiada, afagava-lha o braço. Halrian sentou-se e com
a cabeça baixa continuou o pranto de dor.
Não
lembro quanto tempo passou até retornarmos às salas de aulas.