Amigos do Fingidor

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Mumificação: esperança da vida após a morte


João Bosco Botelho


Não existem registros precisos do início do embalsamamento. No período pré-histórico, as populações sedentárias das margens do Nilo enterraram os mortos sem preparações na conservação dos corpos. A especial qualidade do terreno desértico, quente e seco, conservou intactos alguns corpos. Não é improvável que essa comprovação, incluindo os corpos exumados muitos anos após o óbito, tenha contribuído no aperfeiçoamento das técnicas do embalsamamento, com o objetivo de alcançar melhores resultados.
Por outro lado, esse indicativo pode estar relacionado à crença no renascimento após a morte. Restam questões absolutamente sem respostas, em especial, quanto ao processo que consolidou o convencimento coletivo nos milênios seguintes, entre os egípcios, de ser possível renascer após o enterramento ritual dos mortos. 
Os mais antigos registros de mumificação datam de 3.400 a.C. Trata-se de Hetep-Heres, mãe de Keops e mostram os membros desarticulados, antes de terem sido envoltas com as bandagens.
Modificações importantes ocorreram nos procedimentos para embalsamar os mortos no Egito antigo, antes de existir a codificação, elaborada no Novo Império. A partir dessa época, o trato do cadáver obedecia normas de acordo com a riqueza e a importância social do morto.
Em alguns casos, os embalsamamentos duravam sessenta dias: o corpo era transportado à casa dos deuses; o cérebro liquefeito e retirado através das fossas nasais; era feita a evisceração abdominal, por meio de incisão no flanco esquerdo; o coração permanecia no lugar; as vísceras recebiam cuidados e eram depositadas em recipientes adequados (canopos); o corpo era desidratado, lavado com óleos e essências e envolto com tiras de pano.
As fontes contidas nos papiros são claras no sentido de não haver correlação entre o extraordinário progresso alcançado na técnica de mumificação e o conhecimento da anatomia humana. Sob a perspectiva atual, considerando o incontável número de múmias, produzidas em mais de dois milênios de história do povo egípcio antigo, seria natural esperar-se um soberbo conhecimento anatômico humano. Mas não foi isso o que aconteceu. A descrição dos órgãos estava quase sempre identificada com ferimentos abertos pelo trauma da guerra ou eram de animais. Esse fato reforça as suposições no sentido de que mumificadores não mantiveram relação especial com a Medicina.
Os registros também apontam no sentido de que os componentes da teogonia e teofania egípcias, principalmente, o ka, que valorizava o conservação do corpo, na esperança do renascimento, contribuíram para que não fosse atribuída importância ao estudo da anatomia.
O modo como os embalsamadores tratavam o corpo morto com o objetivo de mumificá-lo, evitando determinar deformidades, também indica a importância dada à inviolabilidade religiosa do corpo morto, sem relação com o aprendizado.
Como não é possível ensinar e aprender sobre o escondido atrás da pele sem esmiuçar os órgãos, apesar do notável avanço na medicina egípcia do Novo Império, a construção teórica para compreender e tratar as doenças se consolidou distante do estudo da anatomia humana.
Essa guarda religiosa dos corpos mortos no politeísmo egípcio, se repetiu nos monoteísmos judaico, islâmico e cristão, punindo com a morte os que ousavam desobedecer. No Ocidente cristianizado, dificultou muito o estudo da anatomia humana. A ruptura dessa ordem impositiva só se consolidou no Renascimento europeu.