Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de março de 2017

Ovoide



Mauri Mrq

Ela o transformou em um ovoide. Sua dominação insistente e a prostração de seus órgãos, paralisavam o movimento humano de um marido corneado. Não tinha pena, resvalava um semblante de condenação quando Rony atuava em qualquer situação que ela não aprovava. Todos sabiam da dominação exercida por Cida, desde o casamento com Rony. Na verdade, ela pensava que era tudo um Rio Negro espelhado, e que as posses de Rony facilitariam o desejo de libertação artística, principalmente a condição que vivia de poder desfrutar do conforto e atuar como bailarina no Corpo de Dança da cidade.
Ainda lembro subindo a ladeira da Japurá, o movimento do braço, da mão, do tapa desferido por Cida pela ciumeira de namorados. No início da paixão, já vislumbrávamos  um destino avizinhado, a saga que Rony iria percorrer, transmudando sua existência, dependente de um ser lindo que amava cegamente, suportando sua condição de casados que iriam se tornar.  Sempre vai ressoar em minha memória aquele tapa na Japurá.
Rony era um bom amigo, mas submisso por uma paixão juvenil amadurecida na dependência psicológica de uma fêmea  com um charme que toda possessiva tem. O fato é que ele estava definhando, seu inferno de convivência e submissão de longos anos o fizeram tomar atitudes, mas sempre impedido por sua consciência obsidiada de Cida. Até no meretrício foi, mas as ofertas da Itamaracá o tornaram um nauseabundo. Apesar de tudo, Rony a sabujava  na esperança do seu compadecimento, mas Cida tinha o espirito ressequido. Foi quando procurou um vidente próximo à Livraria Valer, lhe receitando uma mandinga que quase a matou de disenteria. A sorte foi conseguir concluir o espetáculo que tinha no dia seguinte, mesmo suando frio, fazendo com que seu partner tivesse dificuldades para segurá-la em um pas de deux. O Browns Special que havia comido com as colegas do ballet em uma festinha, foi o débito das chicotadas na esmaltada ao bolo viajante.
Certo dia, a facticidade ecoou no Teatro Amazonas. A energia corporal que a dança provoca em movimentos de brincadeira entre duas bailarinas, Cida fugindo da perseguição alvissareira da manja, atravessa de costas o pano de boca do palco do teatro, e sem perceber que o fosso está baixado, cai em cima do piano de cauda da Orquestra Sinfônica, fraturando a coluna. O pescoço foi perfurado na quina de uma estante de partitura de ferro após o impacto no piano. Ficou paralitica, mexendo somente cabeça e braços, e a voz, quando na emissão das palavras, sai junto a esgares, o que a deixava constrangida, a ponto de ter se tornado praticamente uma muda.
Dizem que um pianista que iria fazer um concerto à noite, ao saber do trágico acidente, a única coisa que comentou foi se o piano estaria afinado para a sua apresentação.
Rony ficou cuidando de Cida, que mal se locomovia numa cadeira de rodas. É incrível que depois de ter se tornado um pestilencial no seu casamento, consiga se manter dedicado cuidando carinhosamente da esposa. O fato é que ele passou a viver seu casamento como achava que deveria ser. Possuía  Cida carnalmente,  mesmo sentido sua insatisfação. Na verdade, Cida odiava. Costuma levá-la ao Teatro Amazonas e a empurrava pelo palco. Obviamente que não gostava, mas Rony vivia agora a seu modo, e como a conheceu no Corpo de Dança, sofria um romantismo retardado.
Certa feita, nos costumeiros passeios ao Teatro Amazonas, Cida, que tinha sido deixada num canto do Palco após Rony dar voltas com ela, observa que nos adereços do Balé Folclórico encostados, havia uma flecha grande e pontuda, e planejou açoitá-lo quando retornasse. E foi o que aconteceu ao voltar. Cravou a flecha no pulmão de Rony quando este a abraçou, evitando assim que gritasse. Em seguida, retirou a lâmina rapidamente para esvair o sangue, e foi definhando dos braços de Cida, escorregando entre as suas pernas mortas, acomodadas na cadeira de rodas.
Em razão do seu estado, prendê-la não foi necessário, seu irmão que morava em São Paulo entrega Cida a uma curandeira amiga de sua mãe. Mas, Da. Naza foi sentindo ao longo do tempo, que o peso daquele espirito de Cida para suportar não era nada fácil, e já com 70 anos apesar de ter curado muita gente com suas ervas, só queria paz e não ter ninguém para se incomodar, e decidiu agir. Certo dia com um dardo, lançou um curare amazônico em seu pescoço. O deliramento para a morte foi imediato, Da. Naza agiu sem remorso.
Pessoas controladas são capazes de explosões.