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quinta-feira, 2 de março de 2017

Práticas médicas nas primeiras cidades



João Bosco Botelho

Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças entre as ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais, apesar dos incríveis avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das ideias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada moléstia era compreendida como unidade única, com indissolúvel componente abstrato, dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como consequência da divinização da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada pelo deus ou deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento.
Os documentos com preciosas informações médicas no Egito antigo são os papiros de Ebers e o de Edwin-Smith, datando aproximadamente de 2.000 a.C. Nesses registros constam os nomes de dezenas de doenças e seus tratamentos, com extraordinário bom senso.
Apesar desse fato, é mantida com veemência a absoluta dependência dos médicos aos deuses e deusas protetoras.
De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado moldando os saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos médicos, estava muito presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo à luz dos conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia, por exemplo, da recomendação para administrar o chá de sementes da papoula aos recém-nascidos com insônia.
Dessa forma, nessas culturas regionais, também está clara a inter-relação de três Medicinas: divina, empírica e oficial, sempre atadas entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma começa e a outra termina:
– Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos;
– Medicina-empírica: utilizando os recursos terapêuticos da natureza circundante;
– Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas por médicos, reconhecidos e remunerados pelo poder dominante.
Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava longe de constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças e idéias religiosas.
Por outro lado, as práticas médicas que se desenvolveram nessas cidades-estados, mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas apresentam notáveis registros da eficácia dos saberes historicamente acumulados, articulando o uso empírico dos recursos da natureza circundante.
Entre muitos exemplos, a Medicina-divina babilônica considera as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça. Por outro lado, confirmando que, paralelamente, coexistiam a Medicina-empírica e a Medicina-oficial, que utilizavam remédios oriundos de plantas medicinais: a beladona, o anis, o óleo de rícino, o gengibre, a hortelã, a romã e a papoula, que continuam sendo utilizados até hoje, por milhões de pessoas em vários continentes.
Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio, as pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, abastecimento de água potável, de fazer inveja às periferias urbanas de muitos países do Terceiro Mundo.
É importante salientar que o progresso na melhoria da condição de vida das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto sanitário, certamente não acessível aos pobres e escravos, não estava estritamente ligado às ideias e crenças religiosas; se tratavam de objetivos concretos, materiais, ligados à saúde e à doença.