João
Bosco Botelho
Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças
entre as ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios
Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais,
apesar dos incríveis avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das
ideias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada moléstia
era compreendida como unidade única, com indissolúvel componente abstrato,
dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como consequência da divinização
da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada pelo deus ou
deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento.
Os documentos com preciosas informações médicas no Egito
antigo são os papiros de Ebers e o de Edwin-Smith, datando aproximadamente de 2.000
a.C. Nesses registros constam os nomes de dezenas de doenças e seus tratamentos,
com extraordinário bom senso.
Apesar desse fato, é mantida com veemência a absoluta dependência
dos médicos aos deuses e deusas protetoras.
De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado
moldando os saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos
médicos, estava muito presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo
à luz dos conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia,
por exemplo, da recomendação para administrar o chá de sementes da papoula aos
recém-nascidos com insônia.
Dessa forma, nessas culturas regionais, também está clara a
inter-relação de três Medicinas: divina, empírica e oficial, sempre atadas
entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma começa e a
outra termina:
– Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e
deuses protetores e taumaturgos;
– Medicina-empírica: utilizando os recursos terapêuticos da
natureza circundante;
– Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas
realizadas por médicos, reconhecidos e remunerados pelo poder dominante.
Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos
papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava
longe de constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de
estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças
e idéias religiosas.
Por outro lado, as práticas médicas que se desenvolveram
nessas cidades-estados, mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas
apresentam notáveis registros da eficácia dos saberes historicamente acumulados,
articulando o uso empírico dos recursos da natureza circundante.
Entre muitos exemplos, a Medicina-divina babilônica
considera as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça. Por
outro lado, confirmando que, paralelamente, coexistiam a Medicina-empírica e a
Medicina-oficial, que utilizavam remédios oriundos de plantas medicinais: a
beladona, o anis, o óleo de rícino, o gengibre, a hortelã, a romã e a papoula,
que continuam sendo utilizados até hoje, por milhões de pessoas em vários
continentes.
Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio,
as pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes
mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas
partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, abastecimento
de água potável, de fazer inveja às periferias urbanas de muitos países do
Terceiro Mundo.
É importante salientar que o progresso na melhoria da
condição de vida das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto
sanitário, certamente não acessível aos pobres e escravos, não estava
estritamente ligado às ideias e crenças religiosas; se tratavam de objetivos
concretos, materiais, ligados à saúde e à doença.