João Bosco Botelho
É impossível saber exatamente a razão determinante da escolha
do fígado como o órgão mais importante ou porque não foi outro órgão, como o
pulmão e o coração. Os indícios da preferência poderiam estar assentados na
alta prevalência de doenças hepáticas e febres com icterícias mortais, nas
margens alagadiças dos rios Tigre e Eufrates.
Adotando esse raciocínio é lógico pressupor que se alguém
pudesse interpretar as variações anatômicas do fígado seria capaz de prever o
futuro pessoas. A adivinhação por meio da hepatoscopia (visão do fígado) para
saber a vontade dos deuses era prática corriqueira em todos os estratos
sociais.
O judaísmo resistiu à tradição politeísta e colocou o centro
do corpo no coração. A escolha poderia estar sedimentada no conhecimento
histórico apontando para as mudanças do ritmo e da força das batidas cardíacas
durante as emoções mais fortes. No Antigo Testamento (AT) existem citações do
coração como sede da vida física (Ge 18, 5; At 14, 17), da tristeza (Dt 15,
10), da alegria (Dt 28, 47) e do medo (Dt 20, 3).
O cristianismo manteve a mesma certeza de que Deus se
comunica com os homens através do coração (Mc 2, 6 8; Lc 3, 15; 2Co 2, 4).
O islamismo foi mais longe. Estabeleceu uma relação com a
presença do Espírito sob o duplo aspecto de Conhecimento e Ser. O coração
passou a representar o órgão da intuição ("al kashf" = revelação, ato
de levantar o véu) e o ponto de identificação (wajd) com o Ser (al wujud).
A força cultural do monoteísmo dominante fez com que, pouco a
pouco, o fígado deixasse de ter importância e a consciência volitiva fosse
acoplada às batidas cardíacas. A literatura medieval está repleta de aforismos
associando o coração à felicidade e aos dissabores do amor.
É também interessante lembrar que a força do espaço sagrado
articulado pelo cristianismo conseguiu suprimir o valor de uma das máximas
hipocráticas (século 4 a. C.) de ser o cérebro o centro das emoções: “Algumas
pessoas dizem que o coração é o órgão com o qual pensamos, e que ele sente dor
e ansiedade. Porém não é bem assim: os homens precisam saber que é do cérebro e
somente do cérebro que se originam os nossos prazeres, alegrias, risos e
lágrimas. Por meio dele, fazemos quase tudo: pensamos, vemos, ouvimos e
distinguimos o belo do feio, o bem do mal, o agradável do desagradável... O
cérebro é o mensageiro da consciência... O cérebro é o intérprete da
consciência...”
O desvendar profano do corpo chegou com a anatomia e a
fisiologia dos séculos 16 e 17, resgatando a maravilhosa percepção de
Hipócrates e trouxe para o primeiro plano um novo centro corpóreo como elo
final entre a evolução e consciência: o cérebro.
A suprema beleza da “Criação do Homem”, pintada por Michelangelo
(1475-1564) no teto da Capela Sistina, no Vaticano, é a sublime manifestação na
arte do deslocamento do coração, como o centro do corpo, para o cérebro. O
afresco que retrata o momento em que o homem recebeu de Deus a inteligência tem
a perfeita forma do sistema nervoso central.