Amigos do Fingidor

sábado, 30 de maio de 2009

Estética do poeta anti/lírico
Adrino Aragão

Zemaria Pinto é, seguramente, dos mais destacados poetas da geração pós-madrugada. Como os companheiros de juventude, ele publicou os primeiros poemas em revistas e jornais independentes nos anos 70 e 80, da chamada geração marginal. Mas não me parece que tenha feito poemas de resistência ou de contestação, coisa tão comum à época. Também não seguiu a trilha daqueles que se lançaram radicalmente contra valores do passado. Buscou sempre no movimento modernista os fundamentos para a renovação da linguagem poética. E, realmente, encontrou o verdadeiro caminho a seguir na vertente da poesia brasileira que, “partindo de propostas estéticas modernistas”, promove a “coexistência do romântico e do moderno no mesmo espaço”. Hoje, com quatro livros de poemas publicados (dois deles de haicais), pode cantar a experiência advinda do aprendizado: “A medida do poema / nasce na palma da mão, // galopando até a língua/ no ritmo desejado. // Mas a música do poema / é o ouvido do leitor.” (...) “O meu poema procura / a ordem fora da ordem. // Mas não resiste o poema / que não reflete uma imagem, // ainda que distorcida / em figura de linguagem.”

O meu primeiro contato com a poética de Zemaria foi a leitura de Fragmentos de silêncio (1995), seu segundo livro. No ano anterior, ele publicara Corpoenigma, que reúne uma série de haicais com forte carga de sensualidade em torno do corpo feminino.

Para aqueles que não o conhecem, Fragmentos de silêncio, como um mosaico simbólico da memória, dá uma boa amostragem das fases percorridas pelo autor. Compõe-se o livro de alguns poemas elaborados naquelas duas décadas, quando o poeta não havia estreado em livro. A linguagem pode ser despojada, simples, sem rebuscados; mas as imagens às vezes se revestem do tecido da metáfora, nem sempre o significado é delimitado e preciso, exigindo por isso releitura e reflexão para a compreensão do texto. Como se pode observar nos versos: “Trago nas mãos a lâmina dos anos / que passaram por mim tragando sonhos: / sementes de um passado sem memória, / inúteis fragmentos de silêncio”. Uma alusão metafórica às décadas sombrias da repressão e censura no país?

Aliás, os poemas, na maioria curtos, quase impulsos fragmentados da memória, falam sobre: a natureza (“dissolve-se a tarde / no alarido das araras / e em flocos de chumbo”); o cotidiano banal e cinzento (“rito da simples manhã: / entre o mijo e o dentifrício / a noite evola-se amarga / na overdose de hortelã”); o erótico (“a nona sinfonia explode / tua lâmina me rompe o ventre” (...) “o beijo a dentada / contigo, eu pelo espaço: / Beethoven & boleros// sou uma égua de fogo”); a metalinguagem, reflexão sobre o fazer poético (“a essência consiste em ser medula / fluir / conter / podar: // condensar!”); o amor (“a noite só tem sentido / se a manhã se descortina / na madrugada dos olhos / dos olhos de mar de Márcia / nos longos braços-abraços / do corpo magro de Márcia”). Há também poemas em que o autor faz reverência a verdadeiros vultos da literatura, como Ezra Pound, Fernando Pessoa, Dylan Thomas, Cecília Meireles e outros.

Igualmente como não cultiva a unidade de temas, a estética dos poemas é variada, indo da liberdade da criação poética à riqueza da métrica da poesia na tradição. Vejam os versos desta quadra inicial da redondilha maior “romança - 1o movimento (modinha)”: “reza, vela, terra nua, / lembranças de nem-me-lembro, / festa de febre, louvor / para os peixes de setembro.” Para Zemaria Pinto, “o poema não reclama, / não requer assepsia. // Apenas pede passagem/ como um quisto que supura: // a urgência do poema / não condiz com a escritura”.

Consciente de que cada livro é uma aventura, agradável e necessária aventura mas arriscada, Zemaria Pinto sabe que escrever é um processo de busca, de aprendizagem. Por isso um livro seu é sempre diferente do outro. Mas só na aparência, pois, como observa Rosa Montero, romancista espanhola, “os universos de interesses e as obsessões do autor estão sempre por trás de cada obra”.

Para concluir. Recomendo que leiam Música para surdos (Editora Valer, 2001). E vejam que belo passo adiante deu o poeta Zemaria Pinto no atingimento da maturidade poética. Trata-se de livro construído com sensibilidade e mãos de mestre como se fora uma partitura musical. Ou “uma poética do devaneio”, tomo de empréstimo do autor a expressão. Mas estejam atentos: “a música do poema / é o ouvido do leitor”. Como adverte o poeta amazonense: “Pois assim é o meu poema: / lúcido, lúdico, meu. // De outra forma, valeria / transformar sonho em poesia?”

Eis o nosso poeta Zemaria Pinto. Quem sabe, um João Gilberto ou um Hermeto Paschoal amazonense em concerto de poesia – para até mesmo surdos que queiram escutar.
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Publicado originalmente na Revista da Literatura Brasileira, n° 49, São Paulo, março de 2008.