Carlos Heitor Cony
Edgar Allan Poe (1809-1849).
Meados de 1997. Num almoço com o poeta e amigo Ivo Barroso, falávamos sobre traduções e nem me lembro mais como chegamos a “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. Em minha vã ignorância, pensava que o poema só havia merecido duas versões em português, a de Machado de Assis e a de Fernando Pessoa.
Ivo falou de uma outra versão, a de Milton Amado. Começou a recitar a primeira estrofe, cuja história é tão popular, entre nós, quanto a abertura de Os Lusíadas. Eu não a conhecia. Tinha referências de uma terceira tradução, a de Gondin da Fonseca. Ignorava compactamente o texto que Ivo recitava.
Foi assim que também me entusiasmei. Sabia que o mineiro Milton Amado traduzira outras obras em parceria com Oscar Mendes. No dia seguinte, Ivo enviou-me a tradução integral, acompanhando o ensaio que havia escrito sobre o tema, dando-me na bandeja um bom assunto para minha crônica diária na Folha de S. Paulo.
Por força da localização do meu texto na página de opinião daquele jornal, minhas crônicas são geralmente de natureza política. Evidente que uso e abuso da independência que é a marca da Folha. Sempre que posso, emigro do dia-a-dia de nossa vida pública e enveredo para temas variados, embora tenha certa relutância em abordar a seara literária – natural constrangimento de quem atua profissionalmente no jornalismo e na literatura.
Bem, seria mais uma crônica, das muitas que já escrevi. Daí que não me emocionei quando recebi o primeiro fax de um leitor pedindo a transcrição integral do texto de Milton Amado. Nos dias seguintes, começaram a chegar telegramas, cartas, faxes e telefonemas com o mesmo pedido. De todas as regiões do Brasil apareciam curtidores do poema, confraria numerosa espalhada em todo o território nacional. Liguei para o Ivo que me deu informação igual: também ele estava sendo solicitado a mostrar o mapa da mina.
Ficamos orgulhosos em saber que um tema literário despertava tanto e tamanho interesse. Uma semana depois, recebi uma espécie de reclamação do departamento ligado ao relacionamento da Folha com seus leitores. O volume de pedidos vindos de todas as partes do Brasil começava a tumultuar o serviço. Sugeriam-me que eu tomasse uma providência.
Fiz nova crônica, explicando o óbvio: meu espaço era pequeno para publicar a tradução de um poema razoavelmente longo. Além disso, havia a questão dos direitos autorais. Transmiti as indicações que me foram passadas pelo Ivo: a tradução de Milton integrava a coleção Poesia e prosa (Obras completas) de Edgar Allan Poe, da Globo, de Porto Alegre, 1943. E, mais recentemente, a edição da Nova Aguilar reunindo a obra completa de Poe.
Posteriormente, num encontro casual com meu amigo Maurício Azedo, ele me agarrou pelo braço, levou-me a um canto e começou a recitar outra tradução de “O Corvo”, essa de Benedito Lopes. Novamente liguei para o Ivo e fiquei sabendo que ele estava dando o toque final em seu ensaio, no qual constaria o original de Poe acompanhado das cinco traduções citadas: Machado, Pessoa, Milton, Gondin, Benedito Lopes, e mais uma ainda, a de Alexei Bueno, feita em 1980.
Trata-se de excelente ocasião para o leitor brasileiro tomar conhecimento não apenas do poema em si mas dos desafios da versão de um texto literário em outra língua. Além de pertencer ao primeiro time dos poetas nacionais, Ivo Barroso é, reconhecidamente, um dos nossos mais importantes mestres na arte da tradução. Seu nome - editores e leitores o sabem – é garantia de seriedade e bom gosto.
Essa é, em resumo, a história deste livro. Embora não se trate de um campeonato, é evidente que temos, Ivo e eu, opinião pessoal a respeito de cada uma das traduções. E aí a surpresa: apesar de o poema ter merecido a atenção de dois monstros sagrados de nossa literatura (Machado e Pessoa), o trabalho de Milton Amado, modesto redator provinciano em Minas Gerais, é disparadamente o melhor, tanto do ponto de vista técnico como da fidelidade interna ao poema.
Em tempo: os direitos autorais da presente edição, por determinação de Ivo e consenso dos herdeiros dos tradutores cuja obra ainda não caiu em domínio público, serão da família de Milton Amado. Afinal, foi ele quem deu pretexto e oportunidade para a publicação, em livro, do ensaio de Ivo Barroso.
De minha parte, comerei o prato frio da vingança podendo informar ao serviço de atendimento aos leitores de a Folha que o retorno dado à crônica sobre “O Corvo” foi um dos motivos deste livro. E que muitos novamente se emocionarão lendo em boa e criativa linguagem literária alguns dos mais belos versos produzidos pelo gênio humano.
(Apresentação do livro “O Corvo” e suas traduções, Lacerda Editores, 1998; organização: Ivo Barroso.)
Até o final deste ano, comemorando os 200 anos de nascimento de Poe, O Fingidor publicará outras versões de "O Corvo".