A cirurgia como arte
João Bosco Botelho
Antiochus et Stratonice (1774), de Jacques-Louis David (1748-1825). Erasístrato está sentado, de vermelho, ao lado da cama de Antiochus, denunciando a causa das palpitações do doente: sua bela madrasta Stratonice.
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A cirurgia, no passar dos milênios, continua mantendo a mesma característica básica – a arte trabalhada no próprio homem –, onde a luta contra a dor e a morte é o pilar sustentador da construção.
Essa estranha arte, que reconstitui o corpo para minimizar a dor e a morte, confunde-se com a história do Homem e tem acompanhado de perto os movimentos de transformação social.
O primeiro registro inquestionável de uma cirurgia, como ação intencional do Homem sobre o homem, foi a amputação de um braço, realiza em torno de 25.000 anos atrás, por alguém que percebeu que o membro deveria ser cortado para manter a vida, marcada no esqueleto pré-histórico, achado no Monte Zagros, no Iraque.
Nos últimos quarenta anos, em resposta aos anseios coletivos, a cirurgia adicionou à prática a frenética busca da perfeição do corpo, seja reconstruindo a forma ou recuperando a função, tornando-o mais belo, possivelmente, atada ao arquétipo divino antropomórfico perfeito.
Sem dificuldade, é possível comparar a cirurgia com a pintura ou qualquer outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião consegue retirar o câncer da tireóide ou o da laringe ulcerada que ameaçam a vida, desenvolve um conjunto de gestos que são indissolúveis da arte. A sensação da obra terminada em uma cirurgia não deve ser diferente da sentida pelo pintor ao terminar o quadro ou a do compositor ao ouvir a criação.
Nos últimos dois séculos, não se pode admitir a cirurgia fora da Medicina. Porém, nem sempre foi assim. Somente no século 17 a cirurgia começou a ser incorporada à prática médica.
Foram os gregos que reconheceram a importância da cirurgia para as práticas médicas. Os livros escritos, na Escola de Cós, na Grécia antiga, em torno do quarto século a.C., contêm volumosa referência a cirurgias realizadas pelos médicos gregos.
Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar daquele povo guerreiro, apareceram os hospitais militares, nas principais cidades do Império, para receber e tratar os soldados feridos em combate. Nessa fase, a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente, na solução das feridas traumáticas da guerra. São dessa época os estudos dos grandes anatomistas Herófilo (340-? d.C.) e Erasístrato (330-? d.C.) que identificaram a tireóide, a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso, além de diferenciar o tendão do nervo.
A partir da ascensão do cristianismo, no século IV, gradualmente, as práticas médicas absorveram o sentido da caridade e perderam grande parte das conquistas greco-romanas em torno da técnica. A Medicina passou a ser compreendida como sacerdócio, em comparação ao ministério de Jesus Cristo, que operava milagres na cura dos cegos, paralíticos e leprosos.
Com o abandono da técnica e sob a ordem caritativa, o Ocidente cristianizado fechou as escolas de Medicina e construiu os hospitais para abrigar os indigentes — nosocomium — em nada parecidos com os hospitais gregos e romanos voltados à intervenção para recuperar a saúde.
O nosocômio abrigava os doentes de todos os tipos, que esperavam a morte, assistidos pelos membros das ordens religiosas voltadas à caridade.
Nesse período, na baixa Idade Média, em consequência das restrições eclesiásticas impostas pelo poder da Igreja, o corpo humano não pode mais ser estudado e as guardas sigilosas, nas abadias, dos livros da cultura greco-romana, contribuíram decisivamente para que a cirurgia se tornasse uma atividade impossível de ser exercida.
Nessa condição restritiva, a cirurgia atravessou dez séculos, sendo exercida, neste período, pelos cirurgiões-barbeiros.
Os cerceamentos eclesiásticos não atentaram às necessidades sociais. Os cirurgiões-barbeiros preencheram os espaços deixados pela ausência da Medicina greco-romana. Esses homens admiráveis, com risco da própria vida, enfrentaram a proibição da Bula do Concílio de Tours (1163) Ecclesia Abohorret a Sanguine (A Igreja abomina o sangue), para amputar pernas e braços dilacerados nas guerras e nos acidentes de caça, extrair dentes, drenar abscessos, e ainda, cortar os cabelos e as barbas.
A primeira resistência coletiva a essa situação começou na Faculdade de Medicina de Montpellier, na França, em 1220. Um grupo de cirurgiões-barbeiros, influenciados pelos novos ares acadêmicos e liderados por Jean Pitard (1238-1315) fundou a Confraria de Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião, e se separaram dos barbeiros.
A cirurgia foi incorporada, definitivamente, como especialidade médica a partir de 1436, quando os cirurgiões-barbeiros foram aceitos como alunos na Faculdade de Medicina de Paris.
Com a utilização da anestesia, a partir de 1846, e da antissepsia, em 1867, o cirurgião pôde debruçar-se por mais tempo no objeto da sua arte — o homem e a mulher — e reunir esforços para empurrar os limites da dor e da vida.
Essa estranha arte, que reconstitui o corpo para minimizar a dor e a morte, confunde-se com a história do Homem e tem acompanhado de perto os movimentos de transformação social.
O primeiro registro inquestionável de uma cirurgia, como ação intencional do Homem sobre o homem, foi a amputação de um braço, realiza em torno de 25.000 anos atrás, por alguém que percebeu que o membro deveria ser cortado para manter a vida, marcada no esqueleto pré-histórico, achado no Monte Zagros, no Iraque.
Nos últimos quarenta anos, em resposta aos anseios coletivos, a cirurgia adicionou à prática a frenética busca da perfeição do corpo, seja reconstruindo a forma ou recuperando a função, tornando-o mais belo, possivelmente, atada ao arquétipo divino antropomórfico perfeito.
Sem dificuldade, é possível comparar a cirurgia com a pintura ou qualquer outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião consegue retirar o câncer da tireóide ou o da laringe ulcerada que ameaçam a vida, desenvolve um conjunto de gestos que são indissolúveis da arte. A sensação da obra terminada em uma cirurgia não deve ser diferente da sentida pelo pintor ao terminar o quadro ou a do compositor ao ouvir a criação.
Nos últimos dois séculos, não se pode admitir a cirurgia fora da Medicina. Porém, nem sempre foi assim. Somente no século 17 a cirurgia começou a ser incorporada à prática médica.
Foram os gregos que reconheceram a importância da cirurgia para as práticas médicas. Os livros escritos, na Escola de Cós, na Grécia antiga, em torno do quarto século a.C., contêm volumosa referência a cirurgias realizadas pelos médicos gregos.
Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar daquele povo guerreiro, apareceram os hospitais militares, nas principais cidades do Império, para receber e tratar os soldados feridos em combate. Nessa fase, a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente, na solução das feridas traumáticas da guerra. São dessa época os estudos dos grandes anatomistas Herófilo (340-? d.C.) e Erasístrato (330-? d.C.) que identificaram a tireóide, a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso, além de diferenciar o tendão do nervo.
A partir da ascensão do cristianismo, no século IV, gradualmente, as práticas médicas absorveram o sentido da caridade e perderam grande parte das conquistas greco-romanas em torno da técnica. A Medicina passou a ser compreendida como sacerdócio, em comparação ao ministério de Jesus Cristo, que operava milagres na cura dos cegos, paralíticos e leprosos.
Com o abandono da técnica e sob a ordem caritativa, o Ocidente cristianizado fechou as escolas de Medicina e construiu os hospitais para abrigar os indigentes — nosocomium — em nada parecidos com os hospitais gregos e romanos voltados à intervenção para recuperar a saúde.
O nosocômio abrigava os doentes de todos os tipos, que esperavam a morte, assistidos pelos membros das ordens religiosas voltadas à caridade.
Nesse período, na baixa Idade Média, em consequência das restrições eclesiásticas impostas pelo poder da Igreja, o corpo humano não pode mais ser estudado e as guardas sigilosas, nas abadias, dos livros da cultura greco-romana, contribuíram decisivamente para que a cirurgia se tornasse uma atividade impossível de ser exercida.
Nessa condição restritiva, a cirurgia atravessou dez séculos, sendo exercida, neste período, pelos cirurgiões-barbeiros.
Os cerceamentos eclesiásticos não atentaram às necessidades sociais. Os cirurgiões-barbeiros preencheram os espaços deixados pela ausência da Medicina greco-romana. Esses homens admiráveis, com risco da própria vida, enfrentaram a proibição da Bula do Concílio de Tours (1163) Ecclesia Abohorret a Sanguine (A Igreja abomina o sangue), para amputar pernas e braços dilacerados nas guerras e nos acidentes de caça, extrair dentes, drenar abscessos, e ainda, cortar os cabelos e as barbas.
A primeira resistência coletiva a essa situação começou na Faculdade de Medicina de Montpellier, na França, em 1220. Um grupo de cirurgiões-barbeiros, influenciados pelos novos ares acadêmicos e liderados por Jean Pitard (1238-1315) fundou a Confraria de Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião, e se separaram dos barbeiros.
A cirurgia foi incorporada, definitivamente, como especialidade médica a partir de 1436, quando os cirurgiões-barbeiros foram aceitos como alunos na Faculdade de Medicina de Paris.
Com a utilização da anestesia, a partir de 1846, e da antissepsia, em 1867, o cirurgião pôde debruçar-se por mais tempo no objeto da sua arte — o homem e a mulher — e reunir esforços para empurrar os limites da dor e da vida.
no último 02 de julho.