Amigos do Fingidor

domingo, 19 de julho de 2009

A partida do velho amigo
Ulysses Bittencourt*


Na intimidade quieta da mata, causa susto e tristeza ver de repente o raio abater a árvore secular. A mesma sensação acometeu-me ante o desaparecimento, dia 26 de fevereiro, do sábio Nunes Pereira. Por sua morte a floresta amazônica ficou sem um dos seus mais altos e valiosos exemplares, um exemplar insubstituível. A metáfora pode ser antiga, mas é exata para expressar o doloroso fato.

Nascido no Maranhão, cedo ele viajou para o Amazonas e ao nosso Estado passou a dedicar quase todo o resto de sua produtiva e longa vida de intelectual, antropólogo, etnólogo e biólogo, partindo da Veterinária. Com seu jeitão boêmio, bom bebedor que foi até findar-se aos 92 anos, Manoel Nunes Pereira, na realidade, era um estudioso metódico, um pesquisador obstinado e pertinaz.

Tendo abandonado o curso de Direito, a partir daí tornou-se autodidata. Além do português, do tupi-guarani, nheengatu, dominava o inglês, o francês, o alemão e o italiano. Mantinha intercâmbio verbal ou por correspondência com os mais importantes nomes da cultura brasileira e estrangeira. Foi a síntese perfeita do homem brasileiro: branco, preto e índio. Ele mesmo dizia ter “os cabelos do português, as feições do índio e o tom de pele mulato herdado de minha mãe”. Daí ser recebido em todos os ambientes com alegria. Para exemplificar: esteve em várias tribos afastadas da “sifilização” (como ele chamava), sendo logo acolhido como sábio pajé e chamado pelos naturais de “saracura branca”. Conviveu por longos períodos com os silvícolas, alimentando-se e procedendo como um deles, o que lhe valeu um enorme repertório engraçadíssimo de episódios e de anotações de raro valor científico, aproveitadas em seus trabalhos.

De vez em quando, Nunes Pereira era tema de extensas reportagens em jornais, revistas e entrevistas na televisão. Guardo três dessas reportagens de O Globo, uma de 1974 e duas outras de 1975 e 1977. Em artigo do Jornal do Brasil, disse dele Carlos Drummond de Andrade: ”Homem de ciência agudamente provido de sensibilidade e visão humanística, eis o que é o caboclo maranhense Nunes Pereira. Daí seu livro soar um som claro, alegre, sadio, jamais instalando tédio pela informação indigesta”. Membro fundador da Academia Amazonense de Letras, Nunes pertencia ainda a inúmeras outras instituições culturais e científicas. Todo esse prestígio, porém, não o afetava. Residindo em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, por muitos anos, fazia suas viagens com módicas ajudas de custo pelo Ministério da Agricultura – do qual foi funcionário, recebendo daí sua modesta aposentadoria – ou comissionado pelo Governo do Amazonas, pouco mais auferindo com a venda de seus livros.

Um sábio que era, morreu pobre, despojado e simples como sempre viveu, respeitado pela grandeza de sua obra e pelas cintilações de sua presença em qualquer meio. Honrou-me frequentando minha casa, como frequentou a casa de meu avô [1], a de meu pai [2], a de meus irmãos, depois também a de meu filho Flávio, com cujo filho Eduardo brincou várias vezes, somando assim uma amizade que se estendeu ao longo do tempo por cinco gerações [3].

Artigo publicado na coletânea póstuma “Patiguá”, Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1993, pp. 114–115; apresentação de Mário Ypiranga Monteiro; desenho reproduzido na capa: Appe (Amilde Pedrosa).

Notas:

"[1] Antônio Bittencourt, ex-governador do Amazonas, autor de Memória do Município de Parintins, 2ª ed. (Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 2001 [1924]);

[2] Agnello Bittencourt, geógrafo, ex-prefeito de Manaus, foi um dos fundadores, em 1917, do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, autor de Corographia do Estado do Amazonas, 2ª ed. Manaus: ACA (Associação Comercial do Amazonas - Fundo Editorial, 1985 [1925]);

[3] “Por instância do acadêmico Bernardo Cabral, proferi a oração de adeus em nome da Academia Amazonense de Letras e do Governo do Estado do Amazonas, depositando simbolicamente no túmulo de Nunes Pereira uma coroa de louros e um ramo de acácia (planta símbolo da Maçonaria), tão sua conhecida" (nota acrescentada por U.B. para a coletânea Patiguá;)

(Artigo publicado originalmente no jornal A Crítica, de Manaus, em 7 de março de 1985).

Ullysses Bittencourt (1916-1993) ocupou a cadeira 3 da Academia Amazonense de Letras. Foi também membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Além de Patiguá, deixou publicado o livro de crônicas Raiz (1985).