Amigos do Fingidor

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O poeta da Uiara
Alexandre dos Santos*

Um dos membros fundadores da Academia Ama­zonense de Letras, o poeta Octavio Sarmento é um dos grandes escritores que estão no esquecimento da Histó­ria da Literatura, não por falta de talento literário, mas pelo fato de os estudiosos – até há pouco tempo – o deixa­rem nesse limbo.

Seus versos, em vida, não foram reunidos em uma obra, foram depois organizados e publicados sob o titulo de A Uiara & outros poemas pelo escritor Zemaria Pinto, decorrente de uma série de estudos promovidos em 2007 pela Academia Amazonense de Letras, em for­ma de palestras. Sarmento é daqueles poetas que sa­bem manusear as técnicas literárias existentes e trans­mite ao leitor a sua subjetividade como poucos, quer seja pela denotação de seu estro poético, sensibilidade, acabamento, quer seja pelo ritmo e forma.

A Uiara & outros poemas retrata uma lenda amazônica, é um poema épico-narrativo de forte apelo regional, dividido em capítulos que contam a saga de um cearense em busca de melhores condições de vida em outra terra. É o espelho de um vasto painel da vida amazônica no início do século XX. Publicado no dia 7 setembro de 1922, é todo composto de versos decassíla­bos, com imagens fortes da seca no nordeste (Tudo é morto em redor, ou na agonia/ Da dor se estorce: há lábios ressequidos,/ Peitos arfando num suplicio horrendo...) e de paisagens amazônicas (A mata rompe em urros, e os barrancos!.../ Ante o olhar deslumbrado do viajante/ Que pasma, ao ver-lhe a perenal beleza...).

O protagonista do poema — Militão —, segundo o ensaísta Zemaria Pinto, pode ser considerado, “um transgressor, como o Juca Mulato”, fazendo referência ao poema de Menotti Del Picchia, pelo fato de os heróis em questão contribuírem para uma identidade de temá­tica regional, pois em Juca Mulato vemos a presença do caipira paulista, enquanto em Militão percebemos o mi­grante nordestino que muito contribuiu para o cresci­mento da região amazônica. Nas palavras do também poeta, o paralelo se deve à “saga de um nordestino pobre, que vivencia a experiência da morte cara-a-cara e depois enlouquece de paixão e desejo...”.

Apesar de o poema possuir uma estrutura épica, pode ser considerado como um romance pelo seu caráter narrativo, por possuir técnicas narrativas, o poema pode ser enquadrado no género épico. 0 poeta sabe descrever o lado psicológico de Militão, por exemplo, quando há a saudade da família, lembrando das cenas terríveis que ali os seus estão ainda vivendo e o objetivo que o fez partir: E a cacimba se mostra, alegre e aberta,/ Da água fresca a fazer doce oferta... Percebe-se o desejo implícito — ainda não manifestado — de suicídio do personagem para logo depois das mazelas que ali vive essa vontade aumentar e se sentir perdido: Como um imenso e desolado mar/ Perdido no Saara do sertão!... A água evolui de uma cacimba para um mar, desolado, em meio ao nada, senão o deserto: o “sertão”.

O contexto do poema se passa na época do ciclo da borracha, o período áureo do Amazonas, onde várias pessoas oriundas de outros estados vieram para cá em busca de fazer fortuna através da árvore de “ouro”, principalmente os nordestinos. Octavio Sarmento, em poema publicado pelos jornais de seu tempo, escreveu um dedicado à seringueira, fraco no teor literário, por ser de cunho mais didático, mas onde é possível estabe­lecer um elo de crença pagã das pessoas à árvore-essência da borracha:

Adoremos, pois, a arvore do ouro,
Que, na mata, se vê sobranceira;
E de joelhos, saudemos, em coro,
Nossa altiva e vivaz seringueira...

Em resumo, nos sete “capítulos” da obra, o poe­ta revela o motivo desse estado de perturbação: seriam os encantos da Uiara, a sereia, conforme a mitologia, a ninfa que ele ouvira cantar pela primeira vez ao iniciar a viagem para o Amazonas: A irresistível voz de uma sereia/ A chamá-lo, a chamá-lo meigamente... Como se vê, não é apenas a Uiara, ser do imaginário amazônico, quem dá título ao poema. É, possivelmente, uma outra sereia, que se caracteriza como a quimera de um ciclo econó­mico inesgotável e perene.

A partir de outros poemas que foram publicados nos jornais manauenses, podemos perceber as influên­cias simbolistas e parnasianas que influenciaram Sar­mento, e isto é justificável pelo fato de vivermos numa “periferia cultural”, onde os movimentos, ideias e pen­samentos chegavam depois. Na época de Octavio Sar­mento, a literatura no Amazonas era praticada nos moldes das escolas mencionadas acima.

Quanto aos “capítulos” que fazem a estrutura do livro, frente ao conteúdo, o primeiro deles se refere à “seca”. Desse modo, Militão ainda está no nordeste e, desejando melhores condições de vida, parte em busca de sua Uiara particular: Compreende que é che­gado o duro instante/ De se furtar à dor que a alma lhe invade/ Do adeus dizer a esse infeliz lugar... O se­gundo capítulo narra a viagem e a sensação de saudade da família, além do primeiro contato com a Uiara (já descrito neste estudo). No terceiro capítulo, o narrador concentra os seus versos em descrever a paisagem amazônica para logo depois contar a lenda da Uiara através de um ex-seringueiro que Militão conhece a bordo:

No rio existe, além da imensa cobra
Que os barcos prende e para o fundo ar­rasta,
Presos aos fortes anéis que, além, desdo­bra,
A linda Uiara, lúbrica e nefasta!...
Desta se diz que, quando a noite desce,
E o luar se distende albente e mago...

A partir deste trecho do poema, o poeta prepara Militão para o encontro com a sereia, onde, no sexto capitulo, existe um sertanejo cansado pelo trabalho e a sua frustração por não ter conseguido ficar rico e fazer fortuna.

O protagonista não foi bem sucedido na Amazó­nia através da borracha por o ciclo estar no seu período de decadência, com o cultivo da seringueira na Ásia barateando o preço de mercado. Sendo assim, vive o Amazonas uma crise econômica.

Em meio a esse desespero, Militão, num impulso, pega o barco e vai ao encontro da Uíara:

Aí, sobre uma pedra, esplende a Uiara:
Bate o luar os seus lindos traços;
...............................................................
Desnudos... Ela, ereta, altiva, ardente
Se mostra nua, da cabeça aos pés...

Desse modo, o herói encontra a morte nos bra­ços da sereia das águas amazônicas. Confirmando a len­da de que quem, uma única vez, ouve o seu chamado, ignora, devido aos encantos e devaneios causados pela ninfa, a vida como antes conhecida.

*Do livro Trilhas da Literatura Amazonense (2008), coletânea de textos críticos e analíticos de alunos de Letras da UEA, organizada pelo professor Marcos Frederico.