Zemaria Pinto
O Romantismo brasileiro produziu dois grandes
mártires: o dramaturgo Qorpo-Santo (1829-1883) e o poeta Sousândrade
(1833-1902). Não estranhe a grafia dos nomes: os editores de texto do século 21
(o futuro!) ainda não a reconhecem. À frente de seu tempo, incompreendidos,
iconoclastas − ou apenas doidos varridos −, estes autores, ignorados ao seu
tempo, têm exigido dos historiadores da literatura brasileira uma revisão
consistente daquele período, conhecido do grande público através de seus heróis
consagrados: Gonçalves Dias, José de Alencar, Castro Alves − estes acima de
todos.
O gaúcho José Joaquim de Souza Leão, autoproclamado
Qorpo-Santo, um funcionário público típico da pequena Porto Alegre da segunda
metade do século 19 − professor, vereador, subdelegado de polícia −, começa a
manifestar debilidade mental com pouco mais de 30 anos. Escreve freneticamente
e produz dezenas de pequenas peças, numa linguagem caótica e com uma estrutura
dramática anárquica, que somente 100 anos mais tarde encontraria
reconhecimento. De vez em quando, o louco escarnecido das ruelas da provinciana
Porto Alegre sai de sua condição de protomártir do antirromantismo para os
píncaros da glorificação que, para um autor que trazia o teatro tatuado na
alma, só pode se traduzir na representação de seu trabalho junto ao público.
E é isso o que o grupo Avacavoa nos traz, nas noites
de sábado e domingo, até o final de setembro: o texto Mateus e Mateusa, de Qorpo-Santo, “rebatizado” como O que era e o que não devia ser. Mas o
autor não vem sozinho: num espetáculo de celebração da loucura − dedicado a
alguns loucos famosos da cidade de Manaus, como Eduardo Ribeiro, Carmen Doida e
Bombalá −, homenageia também o artista plástico Bispo do Rosário, um arquiteto
de minudências, um oráculo do detalhe, onipresente na cenografia do espetáculo.
Ah, há também a música insana de Tom Zé.
Falar que Qorpo-Santo é precursor do teatro do absurdo
parece-me uma impropriedade, uma vez que é pouquíssimo provável que Jarry, ou
mesmo Beckett ou Ionesco o tenham conhecido. Acautelemo-nos, pois e,
sensatamente, como o momento pede, declaremos em alto e bom som: Qorpo-Santo é
o inventor do teatro do absurdo! Que seria inventado também por Alfred Jarry,
em 1896, quando o nosso herói (ou mártir) já em pó se tornara...
Mateus e
Mateusa ou O que era e o que não devia ser é uma das mais representadas e
representativas comédias de Qorpo-Santo: mostra um casal de cerca de 80 anos
discutindo sobre sexo (no casamento) e as relações familiares com suas três
(jovens) filhas. Não se espante o espectador com as cenas de puro pastelão; são
para divertir a platéia, pois a isso serve o teatro. Mas observe a simbologia
por trás dos gestos dos personagens e dos objetos em cena. E reflita. O humor
de Qorpo-Santo é corrosivo e cruel. Dentro de uma perspectiva histórica
meramente pedagógica, podemos afirmar que Mateus
e Mateusa é a carnavalização do teatro bem comportado de José de Alencar e
Martins Pena, modelos consagrados do período − neste sentido é antiteatro,
anticonvencional, o avesso do avesso do avesso.
Nonato Tavares acertou (mais uma vez) em cheio: no
entrecruzamento de texto, cenografia e música, no tom burlesco da
representação, rompendo com todos os limites do realismo, e na escolha dos
atores – especialmente de Eric Fonseca, vivendo Catarina, uma das filhas, uma
escolha repleta de significados e referências a outros trabalhos de
Qorpo-Santo, cuja temática jamais se deixou escravizar pelo pudor ou pelo
preconceito.
Publicado no Amazonas
em tempo, em setembro de 2001.