Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Avacavoa: o elogio da loucura


Zemaria Pinto

 

O Romantismo brasileiro produziu dois grandes mártires: o dramaturgo Qorpo-Santo (1829-1883) e o poeta Sousândrade (1833-1902). Não estranhe a grafia dos nomes: os editores de texto do século 21 (o futuro!) ainda não a reconhecem. À frente de seu tempo, incompreendidos, iconoclastas − ou apenas doidos varridos −, estes autores, ignorados ao seu tempo, têm exigido dos historiadores da literatura brasileira uma revisão consistente daquele período, conhecido do grande público através de seus heróis consagrados: Gonçalves Dias, José de Alencar, Castro Alves − estes acima de todos.

O gaúcho José Joaquim de Souza Leão, autoproclamado Qorpo-Santo, um funcionário público típico da pequena Porto Alegre da segunda metade do século 19 − professor, vereador, subdelegado de polícia −, começa a manifestar debilidade mental com pouco mais de 30 anos. Escreve freneticamente e produz dezenas de pequenas peças, numa linguagem caótica e com uma estrutura dramática anárquica, que somente 100 anos mais tarde encontraria reconhecimento. De vez em quando, o louco escarnecido das ruelas da provinciana Porto Alegre sai de sua condição de protomártir do antirromantismo para os píncaros da glorificação que, para um autor que trazia o teatro tatuado na alma, só pode se traduzir na representação de seu trabalho junto ao público.

E é isso o que o grupo Avacavoa nos traz, nas noites de sábado e domingo, até o final de setembro: o texto Mateus e Mateusa, de Qorpo-Santo, “rebatizado” como O que era e o que não devia ser. Mas o autor não vem sozinho: num espetáculo de celebração da loucura − dedicado a alguns loucos famosos da cidade de Manaus, como Eduardo Ribeiro, Carmen Doida e Bombalá −, homenageia também o artista plástico Bispo do Rosário, um arquiteto de minudências, um oráculo do detalhe, onipresente na cenografia do espetáculo. Ah, há também a música insana de Tom Zé.  

Falar que Qorpo-Santo é precursor do teatro do absurdo parece-me uma impropriedade, uma vez que é pouquíssimo provável que Jarry, ou mesmo Beckett ou Ionesco o tenham conhecido. Acautelemo-nos, pois e, sensatamente, como o momento pede, declaremos em alto e bom som: Qorpo-Santo é o inventor do teatro do absurdo! Que seria inventado também por Alfred Jarry, em 1896, quando o nosso herói (ou mártir) já em pó se tornara...

Mateus e Mateusa ou O que era e o que não devia ser é uma das mais representadas e representativas comédias de Qorpo-Santo: mostra um casal de cerca de 80 anos discutindo sobre sexo (no casamento) e as relações familiares com suas três (jovens) filhas. Não se espante o espectador com as cenas de puro pastelão; são para divertir a platéia, pois a isso serve o teatro. Mas observe a simbologia por trás dos gestos dos personagens e dos objetos em cena. E reflita. O humor de Qorpo-Santo é corrosivo e cruel. Dentro de uma perspectiva histórica meramente pedagógica, podemos afirmar que Mateus e Mateusa é a carnavalização do teatro bem comportado de José de Alencar e Martins Pena, modelos consagrados do período − neste sentido é antiteatro, anticonvencional, o avesso do avesso do avesso.      

Nonato Tavares acertou (mais uma vez) em cheio: no entrecruzamento de texto, cenografia e música, no tom burlesco da representação, rompendo com todos os limites do realismo, e na escolha dos atores – especialmente de Eric Fonseca, vivendo Catarina, uma das filhas, uma escolha repleta de significados e referências a outros trabalhos de Qorpo-Santo, cuja temática jamais se deixou escravizar pelo pudor ou pelo preconceito.

 
Publicado no Amazonas em tempo, em setembro de 2001.