Amigos do Fingidor

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

De Catulo a Simão Pessoa – dois mil anos de poesia e escracho 1/4


 
Zemaria Pinto
 
CATULO A Lírica latina tem seus primeiros registros em meados do século I a.C. Caius Valerius Catullus (87-54 a.C.) é a expressão máxima daqueles a quem o azedo Cícero chamou desdenhosa­mente de “poetas novos”, jovens que preferiam as formas breves, pre­conizadas havia 300 anos pelos alexandrinos, às longas e invariavelmen­te chatas epopeias. Havia nos novos poetas romanos ecos de um tempo ainda mais distante: Safo, poeta grega, de Lesbos, século VII a.C, foi descarada e amorosamente copiada por Catulo, que a homenageou nomeando sua musa como Lésbia. A Lésbia, frívola e inconsequente – cujo nome real era Clódia –, Catulo dedicou a maioria dos 116 carmes legados à posteridade. Entre o amor avassalador e o ódio desmedido, o poeta sintetizou num dístico imortal o dilema trágico de sua in­constância:
 
Odeio e amo.Talvez perguntes por que faço isso.
Não sei, mas sinto que acontece e me torturo.                                  (1)
 
Mas o lírico refinado – sobre quem Carpeaux afirmou ser “no pri­meiro século antes da nossa era, um poeta moderno” – é também o in­trodutor na cultura latina de uma linguagem sarcástica e ferina, no limiar do que os convencionais e puristas de todos os matizes e oca­siões chamariam simplesmente de chula. O Carme 32, por exemplo, é um convite de assustar qualquer mocinha casadoira:
 
Te peço, minha doce Ipsilila,
delícias minhas, graça, mimos meus,
ordena, que finda a sesta, eu te procure,
e caso ordenes, cogita tais cuidados:
despe de trava ou tranca a tua porta,
não te assaltem coceiras de sair.
Mas fica em casa, em raro preparo
de nove, gota a gota, nove fodas.
Se assim quiseres, pressa!, não hesites,
que eu, já almoçado, e farto à farta,
perfuro a um só tempo toga e túnica!                                                (2)        
          
Se Ipsilila despertava uma devastadora paixão priápica, o mesmo não se dá com Ameana:
 
Ameana, mulher super-usada,
me pediu a quantia de dez mil!
Uma mulher de nariz grotesco,
amante de um caipira sem dinheiro!
Parentes, que se preocupam com a moça,
chamem os amigos e os médicos:
a moça está doente. E nem precisa
perguntar o que é: ela  delira!                                                           (3)            


Nem a adorada Lésbia escapou da fúria de Catulo: 

Ah! Célio, a nossa Lésbia, aquela Lésbia,
a própria Lésbia a quem Catulo amou
mais que a todos os seus, mais que a si próprio,
agora, nas encruzilhadas e nos becos,
esfola os netos do magnânimo Remo.                                                 (4)
 

Mas é para os amantes de Lésbia que Catulo guarda a maior dose de, digamos, maldade: 

Imundo puteiro, e vocês, companheiros de putaria
(nona pilastra depois do templo dos irmãos de barrete),
pensam que só vocês têm culhões,
podem  comer  tudo quanto  é moça
e que os outros não passam de bodes?
(...) Pois a minha menina, que fugiu de meus braços,
amada  tanto quanto nenhuma será amada,
pela qual travei tantas batalhas,
senta-se aí, com vocês.
Com ela, vocês todos, nobres e ricos,
fazem amor e, contudo, o que é uma indignidade,
são todos mesquinhos e depravados da sarjeta (...)
                           (5)              

Ao ex-amigo Gélio, que ousou cobiçar (só?) a amada, Catulo lança imprecações terríveis: 

Gélio é esguio, como não seria?: tem ele mãe tão boa
e tão robusta, e tão encantadora irmã,
e tão bom tio, e tão completa abundância de jovens
parentas... Como poderia ele deixar de ser magro?
                 (6)            

Ou: 

Que faz o homem, Gélio, que com sua mãe e sua irmã
satisfaz seus desejos e, sem roupa, passa a noite inteira?
Que faz o homem que não deixa o tio ser marido?
Por acaso sabes que grande infâmia comete? Comete, ó Gélio, qual nem a extrema Tétis
nem o Oceano, pai das ninfas, pode lavar;
pois nenhuma outra infâmia pode ir mais além
mesmo se ele, com a cabeça abaixada, chupasse a si mesmo.           (7)
 
Traduções:
(1), (5), (6), (7): Paulo Sérgio de Vasconcelos
(2), (4): Luiz António de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda
(3): Zélia de Almeida Cardoso
 
OBS:  Escrito e publicado em 1993, em forma de plaqueta.
 
Catulo e Lésbia, por Lawrence Alma-Tadema (1836-1912).