Amigos do Fingidor

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Luiz Bacellar partiu todo vestido de brumas


                                                                           Leyla Leong

 

Domingo à tarde o poeta Luiz Bacellar subiu a escada do céu mansamente, com uma estrela tremeluzindo na mão. Vestia seu paletó de brumas, a camisa de neblina e um arco-íris em gravata atado em nó singelo. Essas imagens não são minhas, mas do próprio poeta. São trechos dos poemas “A escada”, em que usa esse elemento como símbolo de uma partida definitiva e “O poeta veste-se”, ambos publicados em “Frauta de Barro”, seu livro de estreia.


Luiz Bacellar é, sem dúvida, o maior poeta que o Amazonas nos deu. O mais erudito, o mais sofisticado. Publicou pouco, escreveu pouco, não importa: tudo o que disse é definitivo, belo, eterno. Conheci Luiz Bacellar no começo dos anos 60, na casa do meu avô, onde aos domingos ele e outros jovens poetas se reuniam para ouvir música erudita. Anos depois pude conhecê-lo mais de perto, nas reuniões na casa do poeta Elson Farias, casado com minha querida amiga Roseli Franco de Sá, prima de Bacellar.


Nos anos oitenta a nossa amizade estreitou-se sendo frequente a presença do poeta em nossa sala de jantar na Cidade Jardim, mais tarde no conjunto Tiradentes e depois na casa da Praça 14. Trabalhei um tempo no Teatro Amazonas, no finalzinho dessa década. Bacellar visitava a minha sala todos os dias no final da tarde. Conversávamos sobre qualquer assunto entre um e outro cigarro. Podia ser sobre um autor, um espetáculo, uma música, uma comida, pessoas ou bichos. Ele sabia muitas coisas. Às vezes baixava um silêncio. Às vezes abria o livro que sempre trazia na mão e lia um trecho.


Certo dia ele me pediu um favor. Pretendia abrir uma conta bancária e precisava de uma certa quantia (pouca coisa) para poder realizar essa operação. Uma exigência bancária. Prometi levar o dinheiro no dia seguinte. Ele insistiu que me daria um documento declarando ser meu devedor. No outro dia apareceu com um envelope branco na mão. Dentro dele, um texto manuscrito no qual se comprometia a devolver a quantia que lhe emprestara na data combinada. Logo abaixo, a data, a assinatura e o sinete impresso no lacre vermelho.


O poeta tinha estilo e refinamento. Vestia-se com aparente simplicidade, calça e camisa de linho, chapéu panamá, bengala e um indefectível colete, incorporado ao visual com o advento dos shopping-centers refrigerados, onde costumava refugiar-se do calor manauense. No dedo mindinho, o anel com o sinete.


O endereço do poeta era um mistério para muitos. Não costumava receber visitas. Estava sempre em público, caminhando nas ruas, almoçando em restaurantes, na casa dos amigos, ou “filando” a comida cheirosa e consistente servida aos funcionários da Livraria Valer.


Nos últimos tempos, antes da desgraça abater-se sobre ele, um dos seus lugares prediletos era a livraria Saraiva. Escolhia uma poltrona discreta e ali passava as tardes num paraíso de livros, histórias e autores. Será que tem livros no céu?
 
Bacellar, entre Mauri Marques e Tenório Telles, num sábado de novembro, 2006, no El Perikiton.
Foto: Zemaria Pinto.