Amigos do Fingidor

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Luiz Bacellar além da poesia 1/2


Zemaria Pinto

(o poeta de Frauta de barro fala de suas criações gastronômicas e suas preferências políticas, musicais, cinematográficas e até literárias)

 

Um sábado típico de janeiro em Manaus: se não choveu com certeza choverá. De qualquer forma, o mormaço permanente convida a uma cerveja a quatro graus, servida com colarinho alto. A pilsen da serra de Petrópolis, mesmo industrializada, mantém charme e sabor, embora o meu parceiro prefira a lager da garrafinha verde. A ova de jaraqui, com muito alho e cheiro verde, misturada ao arroz branco, vai aos poucos preparando o paladar para o repasto principal: jaraqui frito ao ponto, como só o “seu” Pedro, do El perikiton, no alto de São Jorge, sabe fazer. A pimenta, preparada com esmero de artesão, exala para além dos limites da nossa mesa, despertando a curiosidade de um casal próximo, na verdade, a única mesa ocupada além da nossa.   

Luiz Bacellar completou 84 anos no último 04 de setembro.
Foto: Zemaria Pinto (2006).
A conversa gira em torno do que poderia ser uma entrevista original com um poeta que não gosta de ser chamado de poeta. “Vamos falar da vida”, convida meu interlocutor, o escritor Luiz Franco de Sá Bacellar, que completará oitenta anos no mês de setembro. Nada mais óbvio. Aquela rotina fraterna do almoço aos sábados, regado a cerveja ou a vinho, com ovas de jaraqui ou bolinhos de piracuí, pode mesmo ter como tema a vida 

Bacellar e sua pescada aberta.
Foto: Zemaria Pinto (2008).
Peço então a Bacellar que fale sobre um de seus assuntos favoritos: gastronomia. Afinal, ele é um criador de pratos, como a famosa “pescada aberta à Luiz Bacellar”, que já fez a fama de mais de um restaurante de Manaus. Mas não é só: a “salada minimalista” – mistura inusitada de agrião com tucumã –, a “caldeirada à Luiz Bacellar” e a “moqueca de ovas de matrinxã” são iguarias regionais, feitas com elementos caros à cozinha cabocla, inventadas por um raffiné. Brincando, ele diz que, mais que pela sua poesia, vai ser lembrado mesmo pelos pratos que inventou.  

O poeta de Satori, que por duas temporadas esteve na Europa e , fala e escreve em italiano, espanhol, inglês e francês, além de ler em alemão (“um pouco”, ele declina com modéstia), é um grande contador de histórias – a começar pelas de sua própria ascendência, que, pelo lado de sua mãe, tem alguns nomes ilustres, como o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, e o cacique Araribóia. A família deu a D. Pedro II um ministro dos Estrangeiros, o senador pelo Maranhão Felipe Franco de Sá, que foi também ministro da Guerra por um pequeno intervalo. Aliás, as famílias Franco de Sá e Bacellar estão fortemente enraizadas no Maranhão.  

Nesse ponto, chamo-o a um assunto que sei delicado: sua posição política. A resposta quase atropela a pergunta: “sou antiesquerdista e republicano!” A ascendência ilustre e um interesse obsessivo pela história do Brasil no período monárquico, aliados a uma postura naturalmente aristocrática, deram-lhe a fama de monarquista. Ele lembra que esse pretenso monarquismo, colado nele como um estigma, foi uma piada de Farias de Carvalho, seu contemporâneo no Clube da Madrugada, conhecido pelo humor corrosivo. 

E que tocamos no assunto escritores, pergunto-lhe “quem um dia você quis ser?”. Pensei que ia receber uma resposta atravessada, mas, em vez disso, percebo um momento de rara comoção. Cita inicialmente três portugueses: Fernando Pessoa, Eugênio de Castro e Cesário Verde; mas revela-se “vidrado e até hoje encantado” com Vicente de Carvalho. E confessa: sempre que visita a irmã Inês Maria, em Santos, vai até o monumento dedicado ao poeta – e chora 

Observo que não vejo aproximação estética mais forte com os poetas citados. Ele então discorre sobre João Cabral, Rilke e Prévert. Sobre Cabral não se escusa a uma crítica contundente: “Pedra do sono, O engenheiro e Psicologia da composição são livros soberbos; o resto é mera repetição da mesma fórmula”. Procuro tirar mais informações, provoco-o, mas ele se mantém reticente. Diz admirar Drummond, Afonso Félix de Sousa, de quem foi amigo, Paulo Mendes Campos e Joaquim Cardozo. Tento a última cartada provocativa – e o Concretismo? A resposta, em latim, é quase ríspida, não viesse acompanhada de um muxoxo irônico: “carmen figurativum!”, referindo-se aos milenares poemas em formas de figuras, que seriam “o verdadeiro Concretismo”, para concluir: “o Concretismo não existe, nunca existiu, é uma falácia, uma ilusão.”
 
Obs: entrevista produzida em 2008, para o número 2 da revista Amazônia Viva.