Zemaria Pinto
(o poeta de Frauta de barro
fala de suas criações gastronômicas e suas preferências políticas, musicais,
cinematográficas e até literárias)
Um sábado típico de janeiro
em Manaus: se não choveu com certeza choverá. De qualquer forma, o mormaço
permanente convida a uma cerveja a quatro graus, servida com colarinho alto. A pilsen da serra de Petrópolis, mesmo
industrializada, mantém charme e sabor, embora o meu parceiro prefira a lager da garrafinha verde. A ova de jaraqui,
com muito alho e cheiro verde, misturada ao arroz branco, vai aos poucos
preparando o paladar para o repasto principal: jaraqui frito ao ponto, como só
o “seu” Pedro, do El perikiton, no
alto de São Jorge, sabe fazer. A pimenta, preparada com esmero de artesão,
exala para além dos limites da nossa mesa, despertando a curiosidade de um
casal próximo, na verdade, a única mesa ocupada além da nossa.
Luiz Bacellar completou 84 anos no último 04 de setembro. Foto: Zemaria Pinto (2006). |
A conversa
gira em
torno do que
poderia ser
uma entrevista original
com um
poeta que não gosta de ser chamado de poeta . “Vamos falar da vida ”,
convida meu interlocutor ,
o escritor Luiz Franco
de Sá Bacellar, que completará oitenta anos no mês de setembro . Nada mais óbvio .
Aquela rotina fraterna
do almoço aos sábados ,
regado a cerveja ou
a vinho , com
ovas de jaraqui ou bolinhos de piracuí , só
pode mesmo ter
como tema
a vida .
Bacellar e sua pescada aberta. Foto: Zemaria Pinto (2008). |
Peço então a Bacellar que
fale sobre um de seus assuntos favoritos: gastronomia. Afinal, ele é um criador
de pratos, como a famosa “pescada aberta à Luiz Bacellar”, que já fez a fama de
mais de um restaurante de Manaus. Mas não é só: a “salada minimalista” –
mistura inusitada de agrião com tucumã –, a “caldeirada à Luiz Bacellar” e a “moqueca
de ovas de matrinxã” são iguarias regionais, feitas com elementos caros à
cozinha cabocla, inventadas por um raffiné.
Brincando, ele diz que, mais que pela sua poesia, vai ser lembrado mesmo pelos
pratos que inventou.
O poeta
de Satori, que
por duas temporadas
esteve na Europa e lê , fala e escreve em
italiano, espanhol , inglês
e francês , além
de ler em alemão (“um pouco ”, ele
declina com modéstia ),
é um grande
contador de histórias
– a começar pelas de sua
própria ascendência ,
que , pelo lado de sua mãe , tem alguns
nomes ilustres ,
como o terceiro
governador-geral do Brasil, Mem de Sá, e o cacique
Araribóia. A família deu a D. Pedro II um ministro dos
Estrangeiros , o senador
pelo Maranhão Felipe Franco
de Sá, que foi também
ministro da Guerra
por um
pequeno intervalo .
Aliás , as famílias
Franco de Sá e Bacellar estão fortemente enraizadas no Maranhão.
Nesse ponto ,
chamo-o a um assunto
que sei delicado :
sua posição
política . A resposta
quase atropela
a pergunta : “sou antiesquerdista e republicano!” A ascendência ilustre e
um interesse
obsessivo pela
história do Brasil no período
monárquico, aliados a uma postura naturalmente
aristocrática, deram-lhe a fama de monarquista. Ele lembra que esse pretenso monarquismo , colado nele como
um estigma ,
foi uma piada de Farias de Carvalho , seu contemporâneo no Clube
da Madrugada , conhecido
pelo humor corrosivo .
E já
que tocamos no assunto
escritores, pergunto-lhe “quem um dia você quis ser ?”. Pensei que ia receber uma resposta atravessada, mas ,
em vez
disso, percebo um momento
de rara comoção .
Cita inicialmente três
portugueses: Fernando Pessoa , Eugênio de Castro e
Cesário Verde ; mas
revela-se “vidrado e até hoje encantado” com
Vicente de Carvalho . E confessa: sempre que visita a irmã Inês Maria, em
Santos , vai até
o monumento dedicado ao poeta
– e chora .
Observo que não vejo
aproximação estética mais forte com os poetas citados. Ele então discorre sobre
João Cabral, Rilke e Prévert. Sobre Cabral não se escusa a uma crítica
contundente: “Pedra do sono, O engenheiro e Psicologia da composição são livros soberbos; o resto é mera repetição da mesma
fórmula”. Procuro tirar mais informações, provoco-o, mas ele se mantém
reticente. Diz admirar Drummond, Afonso Félix de Sousa, de quem foi amigo,
Paulo Mendes Campos e Joaquim Cardozo. Tento a última cartada provocativa – e o
Concretismo? A resposta, em latim, é quase ríspida, não viesse acompanhada de
um muxoxo irônico: “carmen figurativum!”, referindo-se aos milenares poemas em
formas de figuras, que seriam “o verdadeiro Concretismo”, para concluir: “o
Concretismo não existe, nunca existiu, é uma falácia, uma ilusão.”
Obs: entrevista produzida em 2008, para o número 2 da revista Amazônia Viva.