João Bosco Botelho
As práticas médicas nos países do Terceiro Mundo, inclusive
nos emergentes, desde os anos sessenta, ficou impregnada pelas teorizações de
Engels, Flexner e Parsons. Os trabalhos acadêmicos ora primam para qualificar a
dor como fruto da injustiça social, ora oferecem a máquina como solução para
prolongar a morte temida.
Apesar de a maior questão dos saberes médicos não estar
resolvida – em qual dimensão da matéria viva a doença começa a substituir a
forma preexistente para transformar o normal em doença? –, os médicos oriundos
da sedução marxista ou do tecnicismo exacerbado acreditam, perigosamente, na
infalibilidade da medicina oficial, produzida nas universidades, e
distanciam-se do doente. As intolerâncias dos dois segmentos forçaram o
abandono da milenar tradição médica que valoriza a relação médico-paciente,
explícita nos escritos da ilha de Cós, no século 4 a.C., como ponto de partida
da boa prática para alcançar a cura.
As ordens médicas da doutrina flexneriana e do socialismo
desmoronado, como ventos polares, aderiram ferozmente na maior parte dos
médicos, entre os anos 1960 e 1980. Se, por um lado, os Relatórios Flexner
concorreram para consolidar o ensino da medicina tecnológica, ligada às
máquinas hospitalares, nos Estados Unidos e na Europa, e a publicação de
Engels, que estudou as condições de vidas dos trabalhadores ingleses, remeteu à
crítica dos abusos do capitalismo, ambos podem ser responsáveis pelo descrédito
com que a ciência lidou, a partir de então, com o conhecimento historicamente
acumulado valorizando práticas milenares de cuidados à saúde.
Entre as piores resultantes da tecnocracia médica se refletiu
no abuso dos medicamentos e da hospitalização. O médico não precisaria conhecer
o paciente, bastaria estabelecer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Os
testes laboratoriais, as imagens da tomografia computadorizada e ressonância
magnética seriam confiáveis para garantir que as doenças, e não os doentes,
responderiam de acordo com o esperado.
Na contracorrente da intolerância que afastou o médico do
doente, algumas faculdades de medicina, especialmente, no Canadá, iniciaram os
estudos para entender como as pessoas se relacionavam com as doenças e práticas
de curas fora dos muros das universidades.
O trabalho desses críticos da exclusiva tecnocracia médica
trouxe às academias os conflitos resultantes das relações profissionais com os
dois sistemas de saberes: o mítico e o cientifico.
Ao contrário das afirmações de Flexner e Parsons, o controle
das doenças sempre esteve além do social, magistralmente descrito pelos
historiadores franceses Jacques Le Goff e Jean-Charles Sournia: “A doença não
pertence somente à história superficial do progresso científico e tecnológico,
mas à história profunda dos saberes e práticas ligados às estruturas sociais,
às instituições, às representações, às mentalidades”.
É insuficiente entender a doença exclusivamente como
consequência das agruras sociais. As evidências que apontam para a doença são
dependentes do social e do genético para que os indivíduos possam fugir da dor
e procurar o prazer. Cada pessoa possui incontáveis padrões específicos para
identificar qualquer ameaça de dor.
Muitas dúvidas quanto à possibilidade de o social causar
alterações genéticas ficaram melhor compreendidas após os estudos do cientista
Susumi Tonegawa, Nobel de 1987, esclarecendo como se dá a variação na ordem dos
aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B.
Como efeito imediato dessas pesquisas, é possível afirmar que
pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel, competente de
desenvolver, durante a vida, infinidade de combinações gênicas adaptadas às
necessidades vividas. Com essa certeza, é possível articular o elo entre a
herança genética e a vida social.