Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Excessos tecnológicos nas práticas médicas


João Bosco Botelho


As práticas médicas nos países do Terceiro Mundo, inclusive nos emergentes, desde os anos sessenta, ficou impregnada pelas teorizações de Engels, Flexner e Parsons. Os trabalhos acadêmicos ora primam para qualificar a dor como fruto da injustiça social, ora oferecem a máquina como solução para prolongar a morte temida.
Apesar de a maior questão dos saberes médicos não estar resolvida – em qual dimensão da matéria viva a doença começa a substituir a forma preexistente para transformar o normal em doença? –, os médicos oriundos da sedução marxista ou do tecnicismo exacerbado acreditam, perigosamente, na infalibilidade da medicina oficial, produzida nas universidades, e distanciam-se do doente. As intolerâncias dos dois segmentos forçaram o abandono da milenar tradição médica que valoriza a relação médico-paciente, explícita nos escritos da ilha de Cós, no século 4 a.C., como ponto de partida da boa prática para alcançar a cura.
As ordens médicas da doutrina flexneriana e do socialismo desmoronado, como ventos polares, aderiram ferozmente na maior parte dos médicos, entre os anos 1960 e 1980. Se, por um lado, os Relatórios Flexner concorreram para consolidar o ensino da medicina tecnológica, ligada às máquinas hospitalares, nos Estados Unidos e na Europa, e a publicação de Engels, que estudou as condições de vidas dos trabalhadores ingleses, remeteu à crítica dos abusos do capitalismo, ambos podem ser responsáveis pelo descrédito com que a ciência lidou, a partir de então, com o conhecimento historicamente acumulado valorizando práticas milenares de cuidados à saúde.
Entre as piores resultantes da tecnocracia médica se refletiu no abuso dos medicamentos e da hospitalização. O médico não precisaria conhecer o paciente, bastaria estabelecer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Os testes laboratoriais, as imagens da tomografia computadorizada e ressonância magnética seriam confiáveis para garantir que as doenças, e não os doentes, responderiam de acordo com o esperado.
Na contracorrente da intolerância que afastou o médico do doente, algumas faculdades de medicina, especialmente, no Canadá, iniciaram os estudos para entender como as pessoas se relacionavam com as doenças e práticas de curas fora dos muros das universidades.
O trabalho desses críticos da exclusiva tecnocracia médica trouxe às academias os conflitos resultantes das relações profissionais com os dois sistemas de saberes: o mítico e o cientifico.
Ao contrário das afirmações de Flexner e Parsons, o controle das doenças sempre esteve além do social, magistralmente descrito pelos historiadores franceses Jacques Le Goff e Jean-Charles Sournia: “A doença não pertence somente à história superficial do progresso científico e tecnológico, mas à história profunda dos saberes e práticas ligados às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades”.
É insuficiente entender a doença exclusivamente como consequência das agruras sociais. As evidências que apontam para a doença são dependentes do social e do genético para que os indivíduos possam fugir da dor e procurar o prazer. Cada pessoa possui incontáveis padrões específicos para identificar qualquer ameaça de dor.
Muitas dúvidas quanto à possibilidade de o social causar alterações genéticas ficaram melhor compreendidas após os estudos do cientista Susumi Tonegawa, Nobel de 1987, esclarecendo como se dá a variação na ordem dos aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B.
Como efeito imediato dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel, competente de desenvolver, durante a vida, infinidade de combinações gênicas adaptadas às necessidades vividas. Com essa certeza, é possível articular o elo entre a herança genética e a vida social.