Amigos do Fingidor

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 10/14

Zemaria Pinto

 

“Carne faminta”

Nos seringais, a repressão à sexualidade não precisa de éditos ou mandamentos: ela se impõe naturalmente, como a cheia e a vazante.

 

A grande angústia do tapiri era a solidão. E solidão é falta de mulher e amor. Isso até já se tornou tema comum e obrigatório em todo romance sobre a Amazônia. O seringueiro daqueles tempos, (...) ou era um homossexual ou um onanista. (BENCHIMOL, p. 189)

 

Samuel Benchimol discorre sobre a “psicanálise da seringa”, mas o seu foco, ao contrário do que transparece do trecho citado, não é a literatura, mas sim estudos sociológicos, entrevistas, matérias da imprensa e dados oficiais. No romance de Ferreira de Castro, assim como a selva é vista pelo narrador como um monstro, a solidão se associa a adjetivos que a configuram como terra arrasada: negra solidão; sepultado na solidão; solidão profunda, imensa, permanente (reinante, imperante), absoluta. E Benchimol cita casos escabrosos, como o do seringueiro que, desejando a menina de 9 anos e não a tendo, foi atrás da irmãzinha de 7 anos – caso registrado em jornal de Manaus, em 1916 (BENCHIMOL, p. 189-190). Em situação similar, Agostinho, que já dissemos ser a representação da repugnância, mata o caboclo Lourenço porque este não quis ceder-lhe a filha de 9 anos. Antes, fora flagrado por Alberto, sob o riso cúmplice de Firmino, em prática de zoofilia. O diálogo que se segue é revelador:

 

– Não há mulher… Que vai um homem fazer aqui?

– É horrível! E horrível!

– Também seu Alberto irá, um dia, laçar vaca ou égua…

– Eu? Não diga isso! Proíbo-lhe que me diga isso, ouviu?

– Você verá, seu moço, você verá… Deixe chegar o dia… (p. 97)

 

Firmino, que estava há seis anos no seringal, faz, claramente, uma confissão que o nivela a Agostinho. Mas o ingênuo Alberto, tomado pela indignação do que vira, não a compreende – ou não a aceita. O relacionamento entre os dois, aliás, de recíproca ternura e mútua delicadeza, poderia sugerir, numa interpretação coetânea, um envolvimento homoafetivo. É uma hipótese que se insinua, mas não se confirma. Quanto ao onanismo, era prática corrente. Na noite em que Alberto, como um moleque no alvorecer do sexo, se sujeita a “brechar” a esposa de Guerreiro, D. Yayá, no banho, fantasiando estuprá-la – “ele se dominava para não arrombar a porta e ir lá dentro, vesti-la, a bem ou a mal, com suas carícias delirantes” (p. 166) –, o narrador, em tortuoso discurso indireto, conclui:

 

Ou continuaria a bastar-se a si próprio, ou aquilo viria a acontecer mais cedo ou mais tarde – admitiu com uma sensação de inevitabilidade. (p. 169)

 

Antes, Alberto pensara em matar Guerreiro, num “acidente” de caça. Yayá nada percebe de suas intenções. Aliás, Yayá – “rosto de outonal beleza e vaga melancolia” (p. 76); “de ancas largas e busto forte” (p. 148); “branca como o marido” (p. 153) – é mero enfeite na narrativa. Tem menos vida que Nhá Vitória, a outra musa de Alberto – “preta sexagenária, de carapinha toda branca e pele sulcada de gelhas” (p. 175) – a quem ele chega a tocar, mas ela, indignada, o repele. Nhá Vitória, que o servia lavando-lhe a roupa, era, com certeza, uma daquelas “gentes” de que ele duvidava que tivessem alma.

A carência de mulheres nos seringais tem farta explicação. A imigração do Nordeste para a Amazônia tinha por finalidade atender a uma demanda provisória, que a mão de obra nativa – caboclos e índios – não atendia. Na prática, não havia migração, mas sim, recrutamento. Apropriadamente, foram chamados, à época da Segunda Guerra, de “soldados da borracha”.

 

A mulher é o elemento fixador por excelência. Dá o sentido de estabilização e permanência na terra em uma imigração bem dirigida. (...) O homem sozinho tem liberdade para ir e vir, fazer e desfazer. Acompanhado de sua mulher e filhos isso não acontece. (...) Passa a ter “obrigação” e responsabilidade, de forma que perde com isso muito de sua coragem e de sua audácia face aos azares e imprevistos. (BENCHIMOL, p. 187)

 

Reiterando a equação escravista de Euclides da Cunha, “ter mulher significava reduzir a zero a possibilidade de conseguir saldo na contabilidade do barracão” (GONDIM, p. 11). E aqui apontamos mais um disparate a minar a estrutura testemunhal-realista-documental da trama de Ferreira de Castro. Falando das mulheres “disponíveis” em Humaitá – duas, “uma preta e uma mulata” –, Firmino diz:

 

Mas quem vai lá? Só os seringueiros de saldo podem ir, mas esses têm mulher e não precisam. (p. 104)

 

Na mesma conversa, Firmino já dissera que “alguma mulher que há, é de seringueiro com saldo” (p. 103). Seringueiro com saldo era uma raridade. Seringueiro casado e com saldo, a acreditar-se na literatura que nos fundamenta, era uma estupidez.

Sendo um ponto tão delicado da trama e considerando que o autor já escrevera antes sobre o tema – “Carne faminta” –, esse detalhe, que a alguns pode parecer insignificante, é apenas a reafirmação da ignorância do autor sobre o universo da sua ficção, o que o faz afundar-se ainda mais na inverossimilhança da trama.     

Sintetizando, a pulsão de vida, representada pelo desejo sexual, é mais forte que qualquer recato – seja de classe, de raça ou de religião. Na visada naturalista do narrador de A selva, a falta de sexo transforma os homens em algo menos que meros animais, nivelando-os – negros analfabetos brasileiros e brancos quase-doutores europeus.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.