Zemaria Pinto
“Carne faminta”
Nos
seringais, a repressão à sexualidade não precisa de éditos ou mandamentos: ela
se impõe naturalmente, como a cheia e a vazante.
A grande angústia do tapiri era a solidão.
E solidão é falta de mulher e amor. Isso até já se tornou tema comum e
obrigatório em todo romance sobre a Amazônia. O seringueiro daqueles tempos, (...)
ou era um homossexual ou um onanista. (BENCHIMOL, p. 189)
Samuel
Benchimol discorre sobre a “psicanálise da seringa”, mas o seu foco, ao
contrário do que transparece do trecho citado, não é a literatura, mas sim
estudos sociológicos, entrevistas, matérias da imprensa e dados oficiais. No
romance de Ferreira de Castro, assim como a selva é vista pelo narrador como um
monstro, a solidão se associa a adjetivos que a configuram como terra arrasada:
negra solidão; sepultado na solidão; solidão profunda, imensa, permanente
(reinante, imperante), absoluta. E Benchimol cita casos escabrosos, como o do
seringueiro que, desejando a menina de 9 anos e não a tendo, foi atrás da
irmãzinha de 7 anos – caso registrado em jornal de Manaus, em 1916 (BENCHIMOL, p.
189-190). Em situação similar, Agostinho, que já dissemos ser a representação
da repugnância, mata o caboclo Lourenço porque este não quis ceder-lhe a filha
de 9 anos. Antes, fora flagrado por Alberto, sob o riso cúmplice de Firmino, em
prática de zoofilia. O diálogo que se segue é revelador:
– Não há
mulher… Que vai um homem fazer aqui?
– É
horrível! E horrível!
– Também
seu Alberto irá, um dia, laçar vaca ou égua…
– Eu? Não
diga isso! Proíbo-lhe que me diga isso, ouviu?
– Você
verá, seu moço, você verá… Deixe chegar o dia… (p. 97)
Firmino,
que estava há seis anos no seringal, faz, claramente, uma confissão que o
nivela a Agostinho. Mas o ingênuo Alberto, tomado pela indignação do que vira,
não a compreende – ou não a aceita. O relacionamento entre os dois, aliás, de
recíproca ternura e mútua delicadeza, poderia sugerir, numa interpretação coetânea,
um envolvimento homoafetivo. É uma hipótese que se insinua, mas não se confirma.
Quanto ao onanismo, era prática corrente. Na noite em que Alberto, como um
moleque no alvorecer do sexo, se sujeita a “brechar” a esposa de Guerreiro, D. Yayá,
no banho, fantasiando estuprá-la – “ele se dominava para não arrombar a porta e
ir lá dentro, vesti-la, a bem ou a mal, com suas carícias delirantes” (p. 166)
–, o narrador, em tortuoso discurso indireto, conclui:
Ou continuaria a bastar-se a si próprio,
ou aquilo viria a acontecer mais cedo ou mais tarde – admitiu com uma sensação
de inevitabilidade. (p. 169)
Antes,
Alberto pensara em matar Guerreiro, num “acidente” de caça. Yayá nada percebe
de suas intenções. Aliás, Yayá – “rosto de outonal beleza e vaga melancolia”
(p. 76); “de ancas largas e busto forte” (p. 148); “branca como o marido” (p.
153) – é mero enfeite na narrativa. Tem menos vida que Nhá Vitória, a outra
musa de Alberto – “preta sexagenária, de carapinha toda branca e pele sulcada
de gelhas” (p. 175) – a quem ele chega a tocar, mas ela, indignada, o repele.
Nhá Vitória, que o servia lavando-lhe a roupa, era, com certeza, uma daquelas “gentes”
de que ele duvidava que tivessem alma.
A
carência de mulheres nos seringais tem farta explicação. A imigração do
Nordeste para a Amazônia tinha por finalidade atender a uma demanda provisória,
que a mão de obra nativa – caboclos e índios – não atendia. Na prática, não
havia migração, mas sim, recrutamento. Apropriadamente, foram chamados, à época
da Segunda Guerra, de “soldados da borracha”.
A mulher é o elemento fixador por
excelência. Dá o sentido de estabilização e permanência na terra em uma imigração
bem dirigida. (...) O homem sozinho tem liberdade para ir e vir, fazer e
desfazer. Acompanhado de sua mulher e filhos isso não acontece. (...) Passa a
ter “obrigação” e responsabilidade, de forma que perde com isso muito de sua
coragem e de sua audácia face aos azares e imprevistos. (BENCHIMOL, p. 187)
Reiterando a equação escravista de
Euclides da Cunha, “ter mulher significava reduzir a zero a possibilidade de
conseguir saldo na contabilidade do barracão” (GONDIM, p. 11). E aqui apontamos
mais um disparate a minar a estrutura testemunhal-realista-documental da trama
de Ferreira de Castro. Falando das mulheres “disponíveis” em Humaitá – duas,
“uma preta e uma mulata” –, Firmino diz:
–
Mas quem vai lá? Só os seringueiros de saldo podem ir, mas
esses têm mulher e não precisam. (p. 104)
Na mesma conversa, Firmino já dissera que
“alguma mulher que há, é de seringueiro com saldo” (p. 103). Seringueiro com
saldo era uma raridade. Seringueiro casado e com saldo, a acreditar-se na
literatura que nos fundamenta, era uma estupidez.
Sendo um ponto tão delicado da trama e
considerando que o autor já escrevera antes sobre o tema – “Carne faminta” –,
esse detalhe, que a alguns pode parecer insignificante, é apenas a reafirmação
da ignorância do autor sobre o universo da sua ficção, o que o faz afundar-se
ainda mais na inverossimilhança da trama.
Sintetizando, a pulsão de vida, representada pelo desejo sexual, é mais forte que qualquer recato – seja de classe, de raça ou de religião. Na visada naturalista do narrador de A selva, a falta de sexo transforma os homens em algo menos que meros animais, nivelando-os – negros analfabetos brasileiros e brancos quase-doutores europeus.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às
segundas-feiras.
Mas
você pode obter o livro completo clicando nesta linha.