Amigos do Fingidor

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A poesia é necessária?

 Lição de escuridão

Thiago de Mello

 

 

Caboclo companheiro meu de várzea,

contigo cada dia um pouco aprendo

as ciências desta selva que nos une.

 

Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,

me levas a ler, nas lonjuras do céu,

os recados escritos pelas nuvens,

me avisas do perigo dos remansos

e quando devo desviar de viés a proa da canoa

para varar as ondas de perfil.

 

Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,

a paragem calada que os peixes preferem

quando as águas começam a crescer.

Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar.

identificas todos os pássaros da selva.

Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).

atravessas a noite no centro da mata,

corajoso e paciente na tocaia da caça.

a traição dos felinos não te vence.

 

Contigo aprendo as leis da escuridão,

quando me apontas na distância da margem,

viajando na noite sem estrelas,

a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande

de onde me fui pequenino e te deixei.

 

De novo no chão da infância,

contigo aprendo também

que ainda não tens olhos para ver

as raízes de tua vida escura,

não sabes quais são os dentes que te devoram

nem os cipós que te amarram à servidão.

 

Nos teus olhos opacos

aprendo o que nos distingue.

Já repartes comigo a ciência e a paciência.

Quero contigo repartir a esperança,

estrela vigilante em minha fronte

e em teu olhar apenas um tição

encharcado de engano e cativeiro.

 

Barreirinha, 1981.