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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 11/14

Zemaria Pinto

 

Aspas, para que vos quero?

Até há algumas linhas, creditamos ao ente narrador todas as falhas da narrativa, considerando-se que o estatuto da ficção permite que isolemos numa bolha todo o universo da diegese. Entretanto, o autor não está isento de falhas, inclusive na construção de um mau narrador. Além de um narrador que mete os pés pelas mãos por óbvia incapacidade demiúrgica, que o antecede, em A selva comete-se uma falha técnica que só pode ser creditada ao autor: o desrespeito às convenções mais elementares da narrativa, na separação entre discurso direto e indireto. Um erro que se repete em dezenas de ocorrências similares. Ressalve-se que a edição utilizada traz incrustrada no seu pórtico a legenda “Edição Definitiva”, o que nos deixa à vontade para descartar possíveis falhas editoriais.

O que convencionamos chamar de discurso – direto, indireto ou indireto livre – é nada menos que a prosaica fala. Numa narrativa, o discurso direto, a fala de uma personagem, será identificado por um verbo dicendi ou por recursos gráficos, como aspas ou travessão. No discurso indireto, o narrador incorpora à sua fala palavras ou frases da personagem.  Vejamos um exemplo simples de discurso direto, onde o verbo e o recurso gráfico são usados ao mesmo tempo:

 

– Que terá acontecido? –, perguntou Alberto. (p. 128)

 

Agora, um exemplo de confusão entre o discurso direto e o indireto:

 

“Se ela soubesse o que ele sofria agora, morreria de desgosto!” (p. 80)

 

Quem está falando é a personagem Alberto, com exclamação e tudo, não é o narrador – como se supõe pela presença do pronome “ele” –, mas as aspas apontam para Alberto. Não houvessem aspas, seria um caso simples de discurso indireto livre.

Vejamos outro exemplo:

 

Alberto desceu a escada e caminhou vagarosamente até à margem do rio. Sufocava. “Miseráveis! Infames! E se ele fosse lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?” (p. 211)

 

O parágrafo divide-se em duas partes: uma, do narrador, sem aspas, e outra, da personagem, entre aspas. Ocorre que esta se subdivide em duas partes também:

 

“Miseráveis! Infames!”

“E se ele fosse lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?”

 

Quem diz a primeira parte é Alberto. Para continuar a segunda parte, o pronome “ele” teria que ser substituído por “eu”. Novamente, se não houvessem aspas, diríamos que era discurso indireto livre. Mas as aspas estão lá. Seria um mero cochilo, a que qualquer autor está sujeito, mas quando isso se multiplica às dezenas deve-se dar outro nome.

 

“Bastar-lhe-ia a passagem para Manaus e de lá para Lisboa. Mesmo em terceira classe, seria já felicidade, pois a ideia do regresso tudo absolvia. E em Lisboa não morreria, certamente, de fome. Daria explicações, faria o mais que fosse preciso, para não sobrecarregar a mãe. Havia de viver e concluir o curso, que outros, com menos possibilidades ainda, também viviam e se formavam.” (p. 174)

 

O pensamento é de Alberto, mas está longe de configurar-se como fala, no sentido estrito da palavra. Para Saussure, a fala “é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor”, enfatizando:

 

A fala é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º – as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º – o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações. (SAUSSURE, p. 45)

 

O “mecanismo psicofísico” da personagem Alberto se confunde de tal maneira com o narrador que parece trair uma inegável vontade do autor em fundir-se com ambos.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.