Zemaria Pinto
Aspas,
para que vos quero?
Até há algumas linhas, creditamos ao ente
narrador todas as falhas da narrativa, considerando-se que o estatuto da ficção
permite que isolemos numa bolha todo o universo da diegese. Entretanto, o autor
não está isento de falhas, inclusive na construção de um mau narrador. Além de
um narrador que mete os pés pelas mãos por óbvia incapacidade demiúrgica, que o
antecede, em A selva comete-se uma falha técnica que só pode ser
creditada ao autor: o desrespeito às convenções mais elementares da narrativa,
na separação entre discurso direto e indireto. Um erro que se repete em dezenas
de ocorrências similares. Ressalve-se que a edição utilizada traz incrustrada
no seu pórtico a legenda “Edição Definitiva”, o que nos deixa à vontade para
descartar possíveis falhas editoriais.
O que convencionamos chamar de discurso –
direto, indireto ou indireto livre – é nada menos que a prosaica fala. Numa
narrativa, o discurso direto, a fala de uma personagem, será identificado por
um verbo dicendi ou por recursos gráficos, como aspas ou travessão. No
discurso indireto, o narrador incorpora à sua fala palavras ou frases da
personagem. Vejamos um exemplo simples
de discurso direto, onde o verbo e o recurso gráfico são usados ao mesmo tempo:
– Que terá acontecido? –, perguntou
Alberto. (p. 128)
Agora, um exemplo de confusão entre o
discurso direto e o indireto:
“Se ela soubesse o
que ele sofria agora, morreria de desgosto!” (p. 80)
Quem está falando é a personagem Alberto, com
exclamação e tudo, não é o narrador – como se supõe pela presença do pronome
“ele” –, mas as aspas apontam para Alberto. Não houvessem aspas, seria um caso simples
de discurso indireto livre.
Vejamos outro exemplo:
Alberto
desceu a escada e caminhou vagarosamente até à margem do rio. Sufocava. “Miseráveis!
Infames! E se ele fosse lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?”
(p. 211)
O parágrafo divide-se em duas partes: uma,
do narrador, sem aspas, e outra, da personagem, entre aspas. Ocorre que esta se
subdivide em duas partes também:
“Miseráveis!
Infames!”
“E se ele fosse
lá? Se arrombasse a porta e libertasse os cinco homens?”
Quem diz a primeira parte é Alberto. Para
continuar a segunda parte, o pronome “ele” teria que ser substituído por “eu”. Novamente,
se não houvessem aspas, diríamos que era discurso indireto livre. Mas as aspas
estão lá. Seria um mero cochilo, a que qualquer autor está sujeito, mas quando
isso se multiplica às dezenas deve-se dar outro nome.
“Bastar-lhe-ia a passagem para Manaus e de
lá para Lisboa. Mesmo em terceira classe, seria já felicidade, pois a ideia do
regresso tudo absolvia. E em Lisboa não morreria, certamente, de fome. Daria
explicações, faria o mais que fosse preciso, para não sobrecarregar a mãe.
Havia de viver e concluir o curso, que outros, com menos possibilidades ainda,
também viviam e se formavam.” (p. 174)
O pensamento é de Alberto, mas está longe
de configurar-se como fala, no sentido estrito da palavra. Para Saussure, a
fala “é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor”, enfatizando:
A fala é um ato
individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º – as
combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de
exprimir seu pensamento pessoal; 2º – o mecanismo psicofísico que lhe permite
exteriorizar essas combinações. (SAUSSURE, p. 45)
O “mecanismo psicofísico” da personagem
Alberto se confunde de tal maneira com o narrador que parece trair uma inegável
vontade do autor em fundir-se com ambos.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às
segundas-feiras.
Mas
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