Zemaria Pinto
Crime
e castigo ou a violência como semeadura
O desfecho de A selva, já o
dissemos antes, é construído com um anticlímax inverossímil e uma alegoria
tipicamente naturalista. A inverossimilhança: o perdão das dívidas financeiras de
Alberto, concedido pelo até então desumano Juca Tristão, que, como
representação alegórica de um capitalismo da pior espécie, reage de modo inexplicável,
surpreendendo ao próprio Alberto, que amealhara o valor suficiente para comprar
de volta sua liberdade. A alegoria: Tiago, um pária, transforma-se, pela raiva incontida,
embora justificada, em justiceiro de Juca Tristão, que cometera o mais bárbaro
dos crimes – a escravização de seres humanos. Após a execução, Tiago se
justifica:
– Eu também
gostava muito do patrão. Ele me podia até matar que eu não fugia. Era mesmo
amigo dele. Mas seu Juca se desviou… Estava a escravizar os seringueiros.
Tronco e peixe-boi no lombo, só nas senzalas. E já não há escravatura… (p. 218)
O castigo por meio do fogo guarda uma simbologia
direta com a purificação espiritual e com a semeadura dos campos, que são
queimados para dar lugar a uma nova safra. Souvarine, o anarquista de Germinal
(1881), sintetiza com precisão essa ideia:
Incendeiem as
cidades, ceifem os povos, arrasem tudo, e, quando não sobrar mais nada deste
mundo podre, talvez nasça outro melhor dos escombros. (ZOLA, p. 150-151)
Para destruir as minas de carvão de Montsou, Souvarine
opta pela água, símbolo tão forte quanto o fogo, no que diz respeito às
liturgias espirituais e agrárias. Por trás dessas metáforas, está uma ideia,
muito mais complexa, que transcende a mera palavra de ordem, produzindo uma grave
reflexão sobre as transformações sociais, ao longo da história:
A violência é a
parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. (MARX, p. 286)
A ação de Tiago passa ao largo de qualquer
ideia político-revolucionária: é apenas a reação violenta de um animal que
estivera a vida inteira enjaulado, diante da compreensão de que Juca Tristão praticara
um crime contra a humanidade, em que ele, embora tardiamente, se incluía. Ferreira
de Castro desenha o seu improvável Souvarine amazônico:
Por
detrás deles surgiu, pernejando lentamente, o negro Tiago. Após o alarme,
ninguém mais o vira, ninguém mais pensara nele. O clarão agonizante, iluminando-lhe
de lado o rosto seco e anguloso, tornava-o mais mefistofélico, velho feiticeiro
que se animara, caminhando desengonçadamente, amparado pelo seu bordão. (p.
217)
O adjetivo mefistofélico é mal
empregado e não corresponde à imagem construída ao longo da narrativa. Tiago
não passa de um pobre diabo, um espectro bêbado, simulacro de nada, mesmo a
despeito do metafórico bordão a compor a figura do falso feiticeiro – símbolo
de autoridade, mágica arma de divindades, eixo de transcendências. A última
imagem de Tiago, ainda que em cores fortes, é apenas um esboço em cinza e cinzas.
O narrador, de novo ele, não confiando
no seu confuso leitor, faz uma ponte entre a pulsão sexual de Alberto e a cólera
do infeliz Tiago, buscando justificar, científica e metafisicamente, segundo os
piores padrões naturalistas, a “razão do instinto”:
Depois do que [Alberto] vira, em si e nos
outros, quando o instinto pode mais e acorda mil reacções ignoradas, mil
imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os desvairam, e os amarrotam, e
os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota,
que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela era irresponsável e
perdia-se na lenda ou na hipótese, longínqua e obscuramente. (p. 219)
A conclusão do narrador, no
antepenúltimo parágrafo do livro, é um misto de asneira e impostura: o ser
humano, criado por um Deus descuidado, é fruto de um pecado – lenda ou
hipótese, longínqua e obscura. Só isso explica que os “lúcidos” e os de “alma
primitiva” reajam de forma similar – como meros animais malfeitos que são. Fica
subtendido que os lúcidos são Alberto e a civilização europeia; e os de alma
primitiva são aqueles que continuariam na selva.
A revolução semeada por Tiago está por
acontecer. A Amazônia continua sendo saqueada – hoje, em muito mais larga
escala que há cem anos – e o povo continua subjugado, em regime de inumana
servidão.
Os 14 capítulos de A selva:
a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras.
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