Amigos do Fingidor

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 13/14

 Zemaria Pinto

 

Crime e castigo ou a violência como semeadura

O desfecho de A selva, já o dissemos antes, é construído com um anticlímax inverossímil e uma alegoria tipicamente naturalista. A inverossimilhança: o perdão das dívidas financeiras de Alberto, concedido pelo até então desumano Juca Tristão, que, como representação alegórica de um capitalismo da pior espécie, reage de modo inexplicável, surpreendendo ao próprio Alberto, que amealhara o valor suficiente para comprar de volta sua liberdade. A alegoria: Tiago, um pária, transforma-se, pela raiva incontida, embora justificada, em justiceiro de Juca Tristão, que cometera o mais bárbaro dos crimes – a escravização de seres humanos. Após a execução, Tiago se justifica:

 

– Eu também gostava muito do patrão. Ele me podia até matar que eu não fugia. Era mesmo amigo dele. Mas seu Juca se desviou… Estava a escravizar os seringueiros. Tronco e peixe-boi no lombo, só nas senzalas. E já não há escravatura… (p. 218)

 

O castigo por meio do fogo guarda uma simbologia direta com a purificação espiritual e com a semeadura dos campos, que são queimados para dar lugar a uma nova safra. Souvarine, o anarquista de Germinal (1881), sintetiza com precisão essa ideia:

 

Incendeiem as cidades, ceifem os povos, arrasem tudo, e, quando não sobrar mais nada deste mundo podre, talvez nasça outro melhor dos escombros. (ZOLA, p. 150-151)

 

Para destruir as minas de carvão de Montsou, Souvarine opta pela água, símbolo tão forte quanto o fogo, no que diz respeito às liturgias espirituais e agrárias. Por trás dessas metáforas, está uma ideia, muito mais complexa, que transcende a mera palavra de ordem, produzindo uma grave reflexão sobre as transformações sociais, ao longo da história:

 

A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. (MARX, p. 286)

 

A ação de Tiago passa ao largo de qualquer ideia político-revolucionária: é apenas a reação violenta de um animal que estivera a vida inteira enjaulado, diante da compreensão de que Juca Tristão praticara um crime contra a humanidade, em que ele, embora tardiamente, se incluía. Ferreira de Castro desenha o seu improvável Souvarine amazônico:

 

Por detrás deles surgiu, pernejando lentamente, o negro Tiago. Após o alarme, ninguém mais o vira, ninguém mais pensara nele. O clarão agonizante, iluminando-lhe de lado o rosto seco e anguloso, tornava-o mais mefistofélico, velho feiticeiro que se animara, caminhando desengonçadamente, amparado pelo seu bordão. (p. 217)

 

O adjetivo mefistofélico é mal empregado e não corresponde à imagem construída ao longo da narrativa. Tiago não passa de um pobre diabo, um espectro bêbado, simulacro de nada, mesmo a despeito do metafórico bordão a compor a figura do falso feiticeiro – símbolo de autoridade, mágica arma de divindades, eixo de transcendências. A última imagem de Tiago, ainda que em cores fortes, é apenas um esboço em cinza e cinzas.

O narrador, de novo ele, não confiando no seu confuso leitor, faz uma ponte entre a pulsão sexual de Alberto e a cólera do infeliz Tiago, buscando justificar, científica e metafisicamente, segundo os piores padrões naturalistas, a “razão do instinto”:

 

Depois do que [Alberto] vira, em si e nos outros, quando o instinto pode mais e acorda mil reacções ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os desvairam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela era irresponsável e perdia-se na lenda ou na hipótese, longínqua e obscuramente. (p. 219)

  

A conclusão do narrador, no antepenúltimo parágrafo do livro, é um misto de asneira e impostura: o ser humano, criado por um Deus descuidado, é fruto de um pecado – lenda ou hipótese, longínqua e obscura. Só isso explica que os “lúcidos” e os de “alma primitiva” reajam de forma similar – como meros animais malfeitos que são. Fica subtendido que os lúcidos são Alberto e a civilização europeia; e os de alma primitiva são aqueles que continuariam na selva.  

A revolução semeada por Tiago está por acontecer. A Amazônia continua sendo saqueada – hoje, em muito mais larga escala que há cem anos – e o povo continua subjugado, em regime de inumana servidão.

 

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.