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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade – 12/14

 Zemaria Pinto

 

Ainda, o Naturalismo

Uma das lendas que cercam o escritor Ferreira de Castro refere-se à sua primazia na abordagem literária das causas sociais, em língua portuguesa. De fato, há o reconhecimento por parte da crítica especializada de que seus primeiros livros antecipam alguns aspectos do Neorrealismo, em Portugal, mas sem o vincular ainda a esse movimento, que viria à luz somente na década seguinte. Massaud Moisés não deixa de apontar o papel do autor nesse processo.

 

Com o romance Gaibéus, de Alves Redol, posto em circulação nos começos de 1940, inicia-se o Neorrealismo. O seu programa de ação opõe-se frontalmente ao da Presença.[1] Desenvolvendo aspectos realistas da obra de Ferreira de Castro, visíveis já na década de 1930, os seus adeptos preconizam uma literatura engajada, de ação social, visando à transformação da sociedade com a denúncia das iniquidades sociais. (MOISÉS, 2012, p. 559)

  

Célio Pinheiro, após afirmar que “o sentido geral” de A selva “é o de um lamento laudatório”, conclui pela relevância da obra e de Emigrantes, na transição para o Neorrealismo:

 

As influências americanas, as obras do tipo das de Aquilino e de Ferreira de Castro conduzem o pensamento dos escritores para o Neorrealismo de 1940, num contraponto ao intimismo de Presença. (PINHEIRO, p. 259)

 

Distante do Neorrealismo, que faria uma literatura engajada e em sintonia com as causas populares, e até do Realismo, que, no século XIX, denunciava as mazelas da burguesia, na raiz de A selva está o anacrônico Naturalismo, cuja visão pseudocientífica reduz a humanidade a um amontoado de párias, zoomorfizando-a, enquanto a natureza é antropomorfizada.

 

Durante todo esse tempo, a selva era cárcere sem porta e enquanto as feras, reconquistada a terra nativa, por ela andavam livremente, estavam presos os homens. (p. 171)

 

Alberto é um trânsfuga, por não se reconhecer mais nas antigas ideias, mas também, sem aderir às novas, torna-se um alienado, contrariando as convicções neorrealistas.

 

“Os republicanos... Os monárquicos...” Tudo aquilo lhe soava imprevistamente a oco, longínquo e sem sentido. Arrefecera-lhe a paixão, as suas antigas ideias pareciam-lhe de tempos remotos, dum outro eu que se perdera e esfumara na lonjura. (p. 173)

 

Acrescente-se ainda que um idealismo desconexo o guia, como transparece neste diálogo com Juca Tristão:

 

– Você, então, é monárquico mesmo?

– Fui, fui.

– Ah, aderiu à República?

– Não. Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos tempos. Sobretudo depois que vim para aqui.

– Então?

– Não sei. É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. (p. 197)

 

Alberto vive um momento de transição ideológica – que nomeamos, páginas atrás, de humanismo pré-iluminista –, mas ignorar o que em 1919, 1920 era aquele sonho de “justiça para todos” e de “elevação coletiva para a humanidade” é outra inverossimilhança. De modo involuntário, Alberto antecipa aquela personagem de Lampedusa, para quem é preciso mudar tudo para tudo continuar como está – ou como sempre foi.[2]

Há de se lembrar que, em língua portuguesa, o pioneirismo na adoção da estética neorrealista pertence ao Brasil, identificada prosaicamente como “Geração de 30”, com A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, secundado por O quinze (1930), de Rachel de Queiroz. Ainda na década de 1930, surgem autores de ponta, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, que viriam a influenciar fortemente o neorrealismo português.

Os 14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade serão publicados sempre às segundas-feiras. 

Mas você pode obter o livro completo clicando nesta linha.



[1] Referência à revista Presença (1927-1940), suporte do movimento identificado como Presencismo, caracterizado por uma “literatura viva”, de forte influência francesa e russa – Proust e Dostoiévski, por exemplo –, em oposição à “literatura livresca”, acadêmica (MOISÉS, 2012, p. 517). Essa “literatura viva”, entretanto, tinha caráter intimista e metafísico, sem qualquer relação com a realidade das ruas, que viria a ser a pedra angular do Neorrealismo. Os principais nomes do Presencismo são Miguel Torga, José Régio e Branquinho da Fonseca, além do veterano Fernando Pessoa, que pontificara no movimento chamado Orfismo, em torno da revista Orpheu (1915). Por analogia, podemos dizer que os dois movimentos constituem o Modernismo em Portugal.

[2] Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), no romance O leopardo (1958), sobre as mudanças políticas ocorridas na Itália – especialmente, na Sicília –, entre 1860 e 1910.