Zemaria Pinto
Ainda,
o Naturalismo
Uma das lendas que cercam o escritor
Ferreira de Castro refere-se à sua primazia na abordagem literária das causas
sociais, em língua portuguesa. De fato, há o reconhecimento por parte da
crítica especializada de que seus primeiros livros antecipam alguns aspectos do
Neorrealismo, em Portugal, mas sem o vincular ainda a esse movimento, que viria
à luz somente na década seguinte. Massaud Moisés não deixa de apontar o papel
do autor nesse processo.
Com o romance Gaibéus,
de Alves Redol, posto em circulação nos começos de 1940, inicia-se o
Neorrealismo. O seu programa de ação opõe-se frontalmente ao da Presença.[1] Desenvolvendo aspectos
realistas da obra de Ferreira de Castro, visíveis já na década de 1930, os seus
adeptos preconizam uma literatura engajada, de ação social, visando à
transformação da sociedade com a denúncia das iniquidades sociais. (MOISÉS,
2012, p. 559)
Célio Pinheiro, após afirmar que “o
sentido geral” de A selva “é o de um lamento laudatório”, conclui pela relevância
da obra e de Emigrantes, na transição para o Neorrealismo:
As influências
americanas, as obras do tipo das de Aquilino e de Ferreira de Castro conduzem o
pensamento dos escritores para o Neorrealismo de 1940, num contraponto ao
intimismo de Presença. (PINHEIRO, p. 259)
Distante do Neorrealismo, que faria uma
literatura engajada e em sintonia com as causas populares, e até do Realismo,
que, no século XIX, denunciava as mazelas da burguesia, na raiz de A selva
está o anacrônico Naturalismo, cuja visão pseudocientífica reduz a humanidade a
um amontoado de párias, zoomorfizando-a, enquanto a natureza é
antropomorfizada.
Durante
todo esse tempo, a selva era cárcere sem porta e enquanto as feras,
reconquistada a terra nativa, por ela andavam livremente, estavam presos os
homens. (p. 171)
Alberto é um trânsfuga, por não se
reconhecer mais nas antigas ideias, mas também, sem aderir às novas, torna-se
um alienado, contrariando as convicções neorrealistas.
“Os republicanos...
Os monárquicos...” Tudo aquilo lhe soava imprevistamente a oco, longínquo e sem
sentido. Arrefecera-lhe a paixão, as suas antigas ideias pareciam-lhe de tempos
remotos, dum outro eu que se perdera e esfumara na lonjura. (p. 173)
Acrescente-se ainda que um idealismo desconexo
o guia, como transparece neste diálogo com Juca Tristão:
– Você,
então, é monárquico mesmo?
– Fui,
fui.
– Ah,
aderiu à República?
– Não.
Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos
tempos. Sobretudo depois que vim para aqui.
– Então?
– Não
sei. É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida a Humanidade está longe
ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. (p.
197)
Alberto vive um momento de transição
ideológica – que nomeamos, páginas atrás, de humanismo pré-iluminista –, mas
ignorar o que em 1919, 1920 era aquele sonho de “justiça para todos” e de “elevação
coletiva para a humanidade” é outra inverossimilhança. De modo involuntário, Alberto
antecipa aquela personagem de Lampedusa, para quem é preciso mudar tudo para tudo
continuar como está – ou como sempre foi.[2]
Há de se lembrar que, em língua portuguesa,
o pioneirismo na adoção da estética neorrealista pertence ao Brasil,
identificada prosaicamente como “Geração de 30”, com A bagaceira (1928),
de José Américo de Almeida, secundado por O quinze (1930), de Rachel de
Queiroz. Ainda na década de 1930, surgem autores de ponta, como Jorge Amado,
José Lins do Rego e Graciliano Ramos, que viriam a influenciar fortemente o
neorrealismo português.
Os
14 capítulos de A selva: a verdade da ficção e a ficção da
verdade serão publicados sempre às segundas-feiras.
Mas
você pode obter o livro completo clicando nesta linha.
[1] Referência à revista Presença (1927-1940), suporte
do movimento identificado como Presencismo, caracterizado por uma “literatura
viva”, de forte influência francesa e russa – Proust e Dostoiévski, por exemplo
–, em oposição à “literatura livresca”, acadêmica (MOISÉS, 2012, p. 517). Essa
“literatura viva”, entretanto, tinha caráter intimista e metafísico, sem
qualquer relação com a realidade das ruas, que viria a ser a pedra angular do
Neorrealismo. Os principais nomes do Presencismo são Miguel Torga, José Régio e
Branquinho da Fonseca, além do veterano Fernando Pessoa, que pontificara no
movimento chamado Orfismo, em torno da revista Orpheu (1915). Por
analogia, podemos dizer que os dois movimentos constituem o Modernismo em
Portugal.
[2] Giuseppe
Tomasi di Lampedusa (1896-1957), no romance O leopardo (1958), sobre as
mudanças políticas ocorridas na Itália – especialmente, na Sicília –, entre
1860 e 1910.