Zemaria Pinto
Como trabalho, a literatura faz uma
transformação da realidade. Transformação da história. A história é um processo
unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o
homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.
Rogel Samuel[1]
O carnaval é a segunda vida do povo, baseada
no princípio do riso. É a sua vida festiva.
Mikhail Bakhtin[2]
Concentração: muito siso e pouco riso
O ciclo econômico
da borracha foi curto, mas muito rentável, para as contas do decaído império e
da nascente república. No âmbito literário, entretanto, apresenta um
considerável déficit: nada além de alguns contos, meia dúzia de romances, uma
ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado,
destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da
Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que
antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história (1909) sob o
subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos erradios, sob o
mesmo título previamente escolhido pelo autor.[3] O
poema referido é A Uiara (1922/2007), de Octavio Sarmento, em que, embora
o motivo seja moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a
forma ainda vacila num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do
látex (1976), peça de Márcio Souza, homenageada intertextualmente em nosso
título, tem o vaudeville como forma e o humor carnavalizado como fim. Os
contos e a quase totalidade dos romances são de extração naturalista. As
exceções são Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (1969), de Paulo
Jacob, exarado numa linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas
afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o
execrável “regionalismo”; e O amante das amazonas, de Rogel Samuel,
sobre o qual iremos refletir.
Rogel Samuel, professor-doutor
aposentado pela UFRJ, tem vários livros publicados, nos gêneros poesia, romance
e ensaio, onde sobressaem-se os livros sobre Teoria Literária. Em sintonia com
as novas mídias, Samuel colabora regularmente com portais de literatura, como Entretextos
e Blocos, além de ter o seu próprio sítio.
Publicado em
1992, dividido em vinte e três capítulos, O amante das amazonas é
anunciado pelo autor como um livro de ficção baseado em fatos reais, incluindo
o depoimento de testemunhas e relatos de seu pai, que navegou pela Amazônia por
40 anos e foi o seu guia no conhecimento da floresta, a bordo do Adamastor.[4] Para
esta análise, vamos nos ater à definição do narrador, “paródia de romance
histórico” (p. 16),[5]
tomando como parâmetro investigativo não o conceito backthiniano de
carnavalização, mas o próprio carnaval brasileiro, buscando conexões entre a
estrutura da obra e elementos do carnaval, identificando o caráter polifônico do
romance, obtido por intermédio da paródia, da alegoria e da metalinguagem, e
pelo dialogismo intertextual estabelecido na dicotomia ficção-história, numa
fusão do sublime com o grotesco, do sagrado com o profano e do sério com o
cômico.
Mas não se iluda,
esta é apenas a apresentação de uma obra literária, importante e singular, sem
pretensões epistemológicas ou hermenêuticas.
O texto Folia no seringal... será postado, em nove partes, toda segunda-feira.
Assista à
palestra completa, no YouTube, clicando aqui.
[1]
“Arte e sociedade” (p. 10). In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria
Literária. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
[2]
BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São
Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 2008. p. 7.
[3]
Um paraíso perdido tem pelo menos três edições diferentes. A primeira,
de 1976, organizada por Hildon Rocha; a segunda, de 1986, organizada por
Leandro Tocantins; e a terceira, sem crédito de organização, publicada em 2003,
pela Editora Valer, Governo do Amazonas e Editora da UFAM.
[4]
Informações constantes da orelha da segunda edição do livro estudado.
[5]
Todas as citações do livro analisado referem-se a SAMUEL, Rogel. O amante
das amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.