Amigos do Fingidor

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 1/9

 Zemaria Pinto

 

Como trabalho, a literatura faz uma transformação da realidade. Transformação da história. A história é um processo unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.

Rogel Samuel[1]

 

O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.

Mikhail Bakhtin[2]


Concentração: muito siso e pouco riso

O ciclo econômico da borracha foi curto, mas muito rentável, para as contas do decaído império e da nascente república. No âmbito literário, entretanto, apresenta um considerável déficit: nada além de alguns contos, meia dúzia de romances, uma ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado, destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história (1909) sob o subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos erradios, sob o mesmo título previamente escolhido pelo autor.[3] O poema referido é A Uiara (1922/2007), de Octavio Sarmento, em que, embora o motivo seja moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a forma ainda vacila num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do látex (1976), peça de Márcio Souza, homenageada intertextualmente em nosso título, tem o vaudeville como forma e o humor carnavalizado como fim. Os contos e a quase totalidade dos romances são de extração naturalista. As exceções são Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (1969), de Paulo Jacob, exarado numa linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o execrável “regionalismo”; e O amante das amazonas, de Rogel Samuel, sobre o qual iremos refletir.

Rogel Samuel, professor-doutor aposentado pela UFRJ, tem vários livros publicados, nos gêneros poesia, romance e ensaio, onde sobressaem-se os livros sobre Teoria Literária. Em sintonia com as novas mídias, Samuel colabora regularmente com portais de literatura, como Entretextos e Blocos, além de ter o seu próprio sítio.

Publicado em 1992, dividido em vinte e três capítulos, O amante das amazonas é anunciado pelo autor como um livro de ficção baseado em fatos reais, incluindo o depoimento de testemunhas e relatos de seu pai, que navegou pela Amazônia por 40 anos e foi o seu guia no conhecimento da floresta, a bordo do Adamastor.[4] Para esta análise, vamos nos ater à definição do narrador, “paródia de romance histórico” (p. 16),[5] tomando como parâmetro investigativo não o conceito backthiniano de carnavalização, mas o próprio carnaval brasileiro, buscando conexões entre a estrutura da obra e elementos do carnaval, identificando o caráter polifônico do romance, obtido por intermédio da paródia, da alegoria e da metalinguagem, e pelo dialogismo intertextual estabelecido na dicotomia ficção-história, numa fusão do sublime com o grotesco, do sagrado com o profano e do sério com o cômico.

Mas não se iluda, esta é apenas a apresentação de uma obra literária, importante e singular, sem pretensões epistemológicas ou hermenêuticas.

 O texto Folia no seringal... será postado, em nove partes, toda segunda-feira.

Assista à palestra completa, no YouTube, clicando aqui.

 



[1] “Arte e sociedade” (p. 10). In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

[2] BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 2008. p. 7.

[3] Um paraíso perdido tem pelo menos três edições diferentes. A primeira, de 1976, organizada por Hildon Rocha; a segunda, de 1986, organizada por Leandro Tocantins; e a terceira, sem crédito de organização, publicada em 2003, pela Editora Valer, Governo do Amazonas e Editora da UFAM.

[4] Informações constantes da orelha da segunda edição do livro estudado.

[5] Todas as citações do livro analisado referem-se a SAMUEL, Rogel. O amante das amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.