Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A poesia é necessária?

         Testamento

Alda Lara (1930-1962)

 

 

À prostituta mais nova

do bairro mais velho e escuro,

deixo os meus brincos, lavrados

em cristal, límpido e puro...

 

E àquela virgem esquecida

rapariga sem ternura,

sonhando algures uma lenda,

deixo o meu vestido branco,

o meu vestido de noiva,

todo tecido de renda...

 

Este meu rosário antigo

ofereço-o àquele amigo

que não acredita em Deus...

 

E os livros, rosários meus

das contas de outro sofrer,

são para os homens humildes,

que nunca souberam ler.

 

Quanto aos meus poemas loucos,

esses, que são de dor

sincera e desordenada...

esses, que são de esperança,

desesperada mas firme,

deixo-os a ti, meu amor...

 

Para que, na paz da hora,

em que a minha alma venha

beijar de longe os teus olhos,

vás por essa noite fora...

com passos feitos de lua,

oferecê-los às crianças

que encontrares em cada rua...