Amigos do Fingidor

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 3/9

Zemaria Pinto

Comissão de frente

O capítulo dezesseis – “Benito” – sintetiza o procedimento narrativo, reunindo exemplos de paródia, alegoria, metalinguagem e intertextualidade. O Bar Bacurau era uma representação microcósmica da Manaus em tempos de sombras, onde avulta acima de tudo e de todos a paradigmal figura de Benito Botelho, arruinado fisicamente, “parecidíssimo com Mário de Andrade” (p. 121), um prodígio literário, com uma memória fotográfica incomum. Polemista profissional, Benito era “poeta e poliglota, lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de [ter] sólidos conhecimentos de grego e de latim” (p. 121). Mas ele não estava sozinho no bar, onde se juntava a velha guarda boêmia da cidade.

 

No Bacurau se reunia a escória da sociedade manauara. Eram pescadores, policiais, bichas, poetas, presidiários, prostitutas, comunistas, peixeiros, músicos e o grupo do Clube Satírico Gregório de Matos, que infernizava a vida dos poetas maiores do Clube da Madrugada. (p. 122)

 

Benito Botelho “era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória, servil, risonha e patriarcal” (p. 126).

Sob a liderança arruinada de Benito, a escória do Bar Bacurau abre o nosso desfile.

 

Porta-bandeira e Mestre-sala

Adiante, daremos ênfase na fundamentação alegórica das personagens de O amante das amazonas, mas comecemos por destacar dois papéis que, secundários, têm fundamental importância na trama: Paxiúba e Maria, ambos caxinauás. Antagônicos, os dois se completam na subserviência ao patrão Zequinha. É curiosa a definição dos caxinauás, dada pelo Coronel Bataillon:

 

Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. (p. 68)

 

A relação especial dos dois com Zequinha Bataillon sintetiza essa simbiose: enquanto Paxiúba é o braço armado, sanguinário, de Zequinha, Maria é o lado amoroso – mãe, irmã, amante. Separados, Paxiúba continua seu mister de violência, mas Maria se transforma, para os que ameaçavam o seu território sagrado: “hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente” (p. 68-69).

Numa paráfrase intertextual entre o libelo político e o ensaio sociológico, o narrador dá a sua versão de Maria Caxinauá:

 

São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias – vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá. (p. 69)

 

Os caxinauás, nas figuras de Maria e Paxiúba, alegorizam as nações exterminadas no contato/enfrentamento com o invasor branco.

 

Assista à palestra, no YouTube, clicando aqui.