Amigos do Fingidor

segunda-feira, 1 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 4/9

Zemaria Pinto

 

Fantasias: ambiente

A trama de O amante das amazonas se desenvolve basicamente em dois ambientes: a selva amazônica, proximidades do Rio Jordão, hoje território do Acre; e a cidade de Manaus.

A selva amazônica é um intricado de ambientes diversos, mas, para delimitá-lo, ao entrar no ponto exato da trama, o Igarapé do Inferno, o autor usa uma metáfora que não deixa dúvidas quanto à sua localização: “o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre (...), limite do fim do mundo” (p. 11). A área onde hoje se localiza o estado do Acre pertencia à Bolívia, mas foi invadida, desde os anos 1870, por seringalistas brasileiros. Os invasores enfrentaram não somente a hostilidade natural do meio, mas também a resistência dos nativos. A pendência internacional só foi resolvida em 1903, quando o Brasil, literalmente, comprou o Acre.

A cidade de Manaus, a partir de 1912, quando fica patente que a debacle estava em curso, transforma-se de “Paris dos trópicos” em uma cidade em ruínas – física e moralmente. Essa letargia se estenderia até a primeira metade dos anos 1940, quando a economia com base na exploração dos seringais nativos recebe um influxo motivado pela demanda americana, na segunda grande guerra. Terminado o conflito, a cidade volta às sombras, período que se estende até a década de 1960, com a implantação da Zona Franca de Manaus.

Um terceiro ambiente, apresentado como um apêndice no meio da narrativa, é a Rua das Flores, situada na Vila de Transvaal, às margens do rio Jordão; provavelmente, o ponto urbano mais próximo do seringal Manixi. Ribamar, o enternecido narrador, é frequentador assíduo do “mais belo jardim urbano” (p. 128) do Amazonas.

Do ponto de vista cronológico, a ambientação se dá em duas fases distintas: de 1876, quando Pierre Bataillon se instala na região, até 1912, quando Ribamar abandona o seringal Manixi e vai para Manaus; e daí em diante até meados dos anos 1950, quando Ribamar já consolidara sua fortuna e seu poder. Portanto, em torno de 80 anos.

 

Samba-enredo: o narrador

A narrativa começa da forma mais convencional possível, fornecendo informações precisas sobre a personagem que vai se configurar como de suma importância para o enredo: era o natal de 1897 quando o narrador, ainda adolescente, se despede de sua mãe, que ficaria em Patos, Pernambuco, iniciando viagem para o Amazonas, em busca de um tio e um irmão, num certo seringal Manixi, às margens do Igarapé do Inferno. Esse narrador, ficamos sabendo depois, se chama Ribamar d’Aguirre de Sousa, e como narrador-personagem, esforçando-se por parecer secundário, ele atrai para si as atenções a partir da segunda metade da narrativa, passada em Manaus.

Ribamar é um narrador complexo. Mesmo em permanente contato com o leitor – “Mas silenciosos, sozinhos, sigamos nós, leitor” (p. 87) –, ele às vezes se esconde, num procedimento parodístico, sob um diáfano véu de onisciência, que é apenas a expressão do que ele tem como a sua verdade. O capítulo treze, por exemplo – “Conversas” –, é todo em terceira pessoa: mostra os detalhes de uma conversa entre o Comendador Gabriel Cunha e o padre Pereira. Como um dos motivos era o próprio Ribamar, ele imagina como poderia ter sido a interlocução entre os dois e a reproduz com todos os travessões e reticências. Antes, no capítulo dez – “Perdida” –, ele narra a violência de um encontro entre Maria e Paxiúba e coloca-se em posição de onisciência – pois somente as duas personagens poderiam narrar a cena –, de tal modo que, ao se autorreferir, o faz em terceira pessoa: “(...) e a sede ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Sousa, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta narrativa” (p. 102): paródia, metalinguagem, intertextualidade.  

Ribamar é um típico narrador-personagem, que se limita a narrar apenas o que é do seu conhecimento, mas que não se furta, em nome do estilo, em fazer-se de narrador pressuposto. Afinal, acima de tudo, sua função maior é a de protagonista da paródia.

 

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